"Para um concurso, Apeles pintou um cavalo, e chamou para juízes não os homens mas os próprios cavalos. Tinha percebido que os rivais se preparavam para vencer o concurso graças à corrupção dos juízes e fez comparecer os cavalos, aos quais mostrou um a um os trabalhos concorrentes. Os cavalos relincharam só diante do cavalo pintado por Apeles, e continuaram a fazê -lo depois, de tal modo que o quadro ficou como contraprova do poder da sua arte.”
(Plínio, o Velho, Histórias Naturais, livro 35, cap.95)
A anedota supracitada por Plínio, o Velho, no século V, num dos capítulos das suas Histórias Naturais dedicados às belas-artes antigas, servia-lhe para ilustrar as qualidades ilusionistas da pintura de Apeles, mítico génio da pintura grega, do qual não se conhece nenhum original.
Nos séculos sucessivos, muitos pintores se ilustraram na representação de cavalos, por vezes com idênticos intentos realísticos, mas quase sempre associados ao cavaleiro para significarem a sua força. Lembremos os cavalos da batalha de Paolo Ucello, o Carlos V de Tiziano, o Filipe IV de Velasquez, o militar sobre um cavalo empinado de Géricault. Mas há também os cavalos domesticados das corridas de Degas e o pacatíssimo cavalo de D. José de Machado de Castro. No séc. XX o tema não cessou de interessar pintores e escultores e podem citar-se os exemplos de Picasso, Franz Marc, Balla ou De Chirico, mas nestes os cavalos não emprestam força, antes sugerem inquietação, fragilidade, estatuária consumida pelo tempo.
Perante todas estas imagens, os cavalos convocados por Apeles raro relinchariam, respondendo mais à tipologia do animal representado do que à qualidade da pintura, que abandonara a ambição realista, embora seja possível imaginar uma evolução do gosto até entre os equídeos. O certo é que perante os quadros de Manuel Amado manifestariam uma sua perplexidade, não sei por que forma, pois a verdade é que não se trata de cavalos de um qualquer picadeiro, mas de telas em que os animais se revestem de uma auréola mitológica, como os que se encontram, creio, nos estábulos celestes de Zeus, ao lado de Pégaso, de Bucéfalo, dos quatro cavalos da Piazza San Marco, dos cavalos lusitanos dos mosaicos romanos, do unicórnio, do cavalo de Marco Aurélio e do cavalo de Tróia.
Na realidade, estes cavalos não habitam numa cocheira mas no atelier do pintor, estão presos às telas, como bem documenta a última imagem deste catalogo, mas nem por isso se mostram menos irrequietos. São uma novidade na obra do artista e circulam em espaços que nós conhecemos de outros quadros, mas eles não. Manuel Amado habituara-nos a interiores de uma geometria cómoda, a estações ferroviárias desertas, a paisagens ora luminosas ora inquietantes incontaminadas por qualquer presença.
Dir-se-ia, e disse-se, uma "pintura metafisica”, ao arrepio das práticas pictóricas da cidade. Um sobressalto nos deram as telas teatrais, com cenas representadas por manequins/silhuetas, mas ainda aí não havia humanos no palco ou nos bastidores, nem latejava sangue. Agora eis-nos perante uma explosão com a presença de seres vivos, não ainda humanos, mas cavalos quase sempre solitários, à imagem da posição singular de Manuel Amado no nosso panorama artístico.
A arquitectura e a paisagem são rigorosas, mas as criaturas parecem-nos fantasmagóricas, oníricas, como que saídas de um sonho em que se chocam forças contrastantes à procura de uma direcção. Rebelde o corcel negro, contraditórios os dois cavalos que disparam em direcções opostas. As telas não contam histórias, mas convidam-nos a imaginá-las, a antropomorfizar o sentido dos movimentos ensaiados pelos animais num teatro equestre.
A obra de Manuel Amado sugere um trabalho sereno e constante. São disso prova a regularidade da sua produção e o gosto em organizar séries ou ciclos de pintura, como que para esgotar um conceito que o desafiara. Mas não há obra sem desassossego, sem uma irrequietação de espírito, que se Foi tornando cada vez mais visível, como na série dos anjos recortados, ora protectores ora ameaçadores. Nesta nova exposição, pode dizer-se que as forças que uma arquitectura apertada constrangia se investiram na vitalidade destes equídeos, prontas a desencadear-se.
Não se trata aqui de simples retratos de cavalos em corpo inteiro, como nas gravuras que decoram os círculos equestres, mas sim de seres instalados num cenário que lhes é estreito, quase desorientados, em que o artista, como numa parábola, reflecte sobre o seu lugar no mundo. Tudo é cuidadosamente calculado na meticulosa organização das figuras, como seria de esperar num artista na plena posse dos seus meios, que recusa um qualquer efeito para captar o olhar. O visitante é convidado serenamente a entrar no quadro, e a descobrir os segredos que contem, e passarão a ser também os seus.
Almada Negreiros contou-me que quando da inauguração dos frescos da gare marítima de Alcântara, um coronel, que disse ser de cavalaria, o abordou com uma observação pertinentemente crítica sobre o cavalo do painel da direita do tríptico da Nau Catrineta. Indignava-se o coronel que nunca vira um cavalo assim. Ao que Almada, com a cerimoniosa ironia que o caracterizava, respondeu: "Tem V Exa. toda a razão e é o que diz o poema – ‘um cavalo branco/ que nunca houve outro igual’.”
Os cavalos de Manuel Amado são desta mesma raça poética.