1 – Como é bem conhecido, a historiografia e a crítica da arte sempre se souberam dotar dos mecanismos necessários para tentar aprisionar o seu objecto de estudo. Assim, a primeira classificou as obras de arte por técnicas, por estilos, por géneros, escolas, movimentos. A segunda definiu métodos de análise da obra, apurou o estabelecimento de relações e considerações no interior da prática de determinado artista ou de dado grupo geracional, e mais geralmente discutiu sobre a relevância, ou não, desta ou daquela obra no contexto do seu tempo. Ao proceder deste modo, os especialistas das várias disciplinas tentavam assim facilitar o seu trabalho pela organização e classificação de um tipo de objectos que, na sua diversidade, acaba sempre por conseguir escapar de algum modo a todas (estas e outras) tentativas de aprisionamento pelo pensamento, pela linguagem e pela escrita. Qualquer história da arte, qualquer texto crítico não pode, e deve sempre recordar-se disso, abarcar a abertura sobre a realidade que uma obra de arte sempre proporciona. Serve esta introdução de aviso para as classificações mais expeditas que têm sido feitas a propósito da obra de Manuel Amado. Embora se trate de uma obra nitidamente feita no presente, foge à inclusão em estilos e famílias. Não lhe conhecemos parentes próximos no presente, mas a primeira exposição que o artista fez, em 1978, a convite de Cruzeiro Seixas, permite entrever uma sensibilidade ancorada numa época que revalorizou a figura e a imagem – pensemos no Nouveau Réalisme francês, por exemplo, nos espaços gelados e vazios de Aillaud e Monory – a par com um interesse pela espacialidade que lhe virá decerto da sua formação inicial de arquitecto. O que se passa, quando se consideram as pinturas realizadas durante estes quase trinta anos desde que essa exposição ocorreu, é que notamos uma notável coerência interna na obra considerada como um todo: mais do que a sujeição à contingência do tempo, Manuel Amado mantém-se fiel ao universo que fundamenta e explica a sua pintura. E este é um universo feito de memórias e imagens pessoais, de lugares e espaços percorridos, de uma luz fria, matinal e sem nuvens como é a luz reconstruída das recordações de infância.
2 – Isto não quer dizer que o impulso classificatório que é condição do pensamento não se manifeste neste caso específico. O próprio artista, ao pensar na antologia de obras suas que estariam presentes, definiu os seguintes grupos temáticos: praias, exteriores, objectos, arquitecturas, interiores e um núcleo mais geral que intitulou «retratos/pinturas antigas». As semelhanças com os antigos géneros da pintura são muitas. Na própria terminologia escolhida, os «retratos» (que por sinal incluem um número muito reduzido de obras) são os únicos que se servem da antiga terminologia definida durante a era moderna. Todas as outras obras subdividem um género mais geral – paisagem ou natureza-morta -, submetendo-o a uma classificação que leva mais além a ordenação do mundo que a define. É que, nesta ordem imaginada para o seu trabalho, Manuel Amado trabalha, não com a realidade visível, mas com a reconstrução operada pela memória sobre as impressões mais fortes de toda a sua vida.
3 – Os trabalhos que são apresentados nesta exposição, na realidade, encerram e iniciam simultaneamente um ciclo na actividade do artista. Há tempos, apresentou uma exposição individual na Galeria de Pintura do Rei D. Luís, em Lisboa, cujas obras possuíam como denominador comum o facto de se referirem ao universo do teatro. Cenários, plateias, palcos e adereços configuravam espaços vazios de actores e de público, e que destacavam a qualidade irreal e fantasmática da representação teatral. Por vezes, éramos confrontados com a presença de tal ou tal figura da commedia dell’arte, mas ela recusava-se sempre a deixar identificar com precisão. Tudo indicava que o que tinha interessado ao artista, o motor do seu trabalho e do seu pensamento era a criação de um espaço imbuído de irrealidade, embora também estivesse enraizado nas memórias mais profundas. Depois desta série, Manuel Amado escolheu regressar aos temas e motivos que tornaram a sua obra emblemática e imediatamente reconhecível entre todas, e que já nomeámos acima. Mas será esta temática assim tão diferente da anterior? O que é certo é que a mesma qualidade irreal se destaca da sua pintura desde o início. E isto é ainda mais surpreendente quando ouvimos o artista falar da sua obra: tal recanto ficava na casa do Campo Grande, onde viveu em criança, no outro ouvia-se a sineta que chamava para o almoço, esta paisagem via-se da janela da casa de praia, outra é na de Setúbal ou de Lisboa. Tudo parece perfeitamente identificado. Mas tudo, ao mesmo tempo, possui uma aura de irrealidade que prende hipnoticamente o olhar.
4 – Este sentimento tem decerto a sua origem na técnica particular que Manuel Amado escolheu para a sua obra. Ao invés do traço preciso e geométrico do arquitecto, a que talvez pudesse estar habituado, cada pintura é feita de camadas sucessivas e sobrepostas de aguadas de óleo. Não existem contornos definidos, como também raramente se identifica o trabalho do pincel ou da espátula. Ou seja, o corte rígido entre manchas coloridas é apenas uma ilusão criada pela distância do olho do espectador em relação ao plano do quadro, já que mesmo o desenho inicial, que precede a primeira demão de pintura, é um esboço vago e desbotado das linhas de composição que vão organizar o espaço. Assim, a possível referência à pintura clássica, que poderíamos notar na utilização da perspectiva linear ou à fotografia, herdeira daquela na limitação estrita entre zonas de luz e sombra, esvai-se na própria materialidade da pintura. Delas, apenas fica um jogo de espelhos entre a lembrança e a sua impressão que é criador de um labirinto de verticais, horizontais e ortogonais, de luzes e de sombras, e onde até o mais humilde tema – as casas de banho, os corredores, o drapeado do lençol em cima da cama – possui o seu lugar.
5 – O espelho reflecte a realidade, é certo, mas cria uma imagem que não é nem real, nem imaginária: é virtual, pois está sujeita à mais ínfima alteração consoante os movimentos do olho de quem olha. Virtualidade: este é o adjectivo que melhor se adequa às imagens de Manuel Amado, elas que já não possuem referente preciso mas que têm origem sobretudo numa ideia mental polida pelo tempo. Como as imagens virtuais que nos são mais acessíveis, as da cibernética, as pinturas de Manuel Amado ostentam a limpeza artificial de mundos eternamente disponíveis feitos a partir de píxeis coloridos. São fantasmáticas já que, apesar da indicação permanente de zonas de luz e sombra, o tempo não passa pelo que é imaginado. Não há manchas de humidade nestes muros, nem tinta que se esboroa, lixo na calçada, graffiti nas paredes. Não há habitantes, excepção feita à mulher que partilha com os lugares o afecto profundo. Não há tempo, portanto, apenas espaço. E cada vez mais, à medida que nos embrenhamos no todo da obra do autor, este espaço é (também virtualmente) aberto, de quadro para quadro, de pintura para pintura, limitado apenas pelas dimensões de cada um.