Pintar resulta de se olhar muito - de olhos abertos e de olhos fechados. Manuel Amado olha as coisas até saber tudo de cor.
Olhar é pensar e pensar é construir - como desenhar e pintar. Ao olhar e ao pintar criam-se jogos de elementos sobre os jogos de elementos que outros (ou a natureza) já criaram.
Estabelecem-se novas regras para regras já em funcionamento. Representa-se uma nova peça com os pedaços de todas as peças já existentes.
Representar (figurar) o mundo é estabelecer um novo mundo; não uma realidade paralela mas uma realidade sobreposta.
Representar é procurar no que nos é exterior a nossa necessidade interior - é ela que nos guia nessa acção.
Representar é decifrar o exterior através de uma cifra pessoal. Decifrar o mundo é procurar um mapa para nós mesmos nos situarmos.
A paixão por uma coisa leva-nos a representá-la. Ao mesmo tempo que lhe atribuímos um discurso interpretativo (Manuel Amado usa o da pintura) transformamos essa coisa em enigma. Transformá-la em enigma revela-a como enigma para os outros. Quer dizer, desencadeia o interesse público, torna-a objecto do mundo de cada um dos que a olham (pensam) e que sobre ela constroem, ainda/eventualmente, outras/novas realidades sobrepostas.
O jardim é uma das formas mais eficazes de olhar, pensar, construir o mundo.
O jardim é o intermediário ideal de todas as paixões.
O jardim é uma modalidade universal e particular. Releva de vários tempos históricos concretos e revela todos os tempos subjectivos e individuais.
O jardim aceita todas as dimensões: do Éden aos terraços da Babilónia, da composta janela renascentista ao labirinto revelado dos canteiros franceses, do inventado prado inglês à construção mental do Zen, da solitária caldeira da árvore urbana, tristemente abandonada aos cães, à prateleira de cactos no interior de uma marquise soalheira.
Cada jardim contém uma cifra. As perspectivas que constrói são as linhas onde essa cifra se inscreve e as regras que organizam a sua linguagem; a luz e a sombra, as massas altas de verde, os volumes escultóricos dos buxos e as formas, cores e cheiros dos rasos canteiros de flores, são os vocábulos disponíveis dessa linguagem.
A cifra deixada por quem construiu o jardim é continuada por quem o trata e por quem o usa.
Entendida e desentendida, tornada mais complexa ou destruída a cifra habita o desenho mas cresce com as plantas que dão corpo ao desenho, vive nos musgos que se agarram aos troncos, nas humidades que nascem das pedras, morre e renasce em cada estação.
Novas sombras de corpos em crescimento contínuo recolhem o sol que todos os dias dá a volta ao jardim, as raízes recolhem as águas, as flores oferecem-se aos olhos, ao olfacto, aos dedos.
A cifra de que falamos existe como realidade cultural e como cenário ideal de cada visitante. A cifra pode ser determinada em estudos históricos objectivos, inventada livremente em cada visita ou restabelecida como mapa de uma obsessão individual.
Passear num jardim é desenhar e imaginar um destino em aberto. Parar no percurso desse caminho e ler um romance ou um poema é criar mais um universo dentro do universo tomando cada momento num tempo dentro de outro tempo. Parar no jardim simplesmente para ver o jardim é adivinhar o percurso que falta percorrer, é criar um jardim em devir, uma possibilidade infinita de novos jardins.
Tocar nas coisas, cheirar as coisas de que um jardim se faz, plantar, cortar, permite-nos, a diversos níveis, trocar de corpo com o jardim, fazer corpo com ele.
Jardinar não é apenas fazer jardinagem. É, em português, um modo familiar de nos referirmos a um passeio sem destino seguro, sem tempo necessário, sem objectivo determinado.
Pintar é a maneira cifrada de Manuel Amado juntar tudo isto: o acto de passear, de cortar, de plantar, de ver, de ler, de cheirar, de imaginar, de desenhar, de se recordar.
Manuel Amado pinta de cor e por necessidade interior. Pinta memórias de uma memória: a luz e a sombra, lugares perdidos e cidades habitadas apenas pela luz; pinta as casas ou, finalmente, pinta «jardins encantados».
Todos os quadros desta exposição se resumem, afinal, ao primeiro deles. E o título de toda a recente série de pinturas é ainda à mais antiga das telas que simbolicamente se aplica.
O verdadeiro «jardim encantado» não é o que aqui se desdobra em múltiplas vistas, deformado pela liberdade que a memória garante. «O jardim encantado» é, exactamente, o primeiro quadro da exposição, aquele que se chama muito simplesmente, como se através desse título nenhuma magia especial desejasse de si mesmo revelar, «O lago da mata».
Este quadro é o único que não pertence à série actual - nem por data (1993) nem por local tratado (jardim do Palácio Pimenta ao Campo Grande, em Lisboa) nem por lógica de abordagem. Mas é ele que contém em si a energia toda do passado e que a transporta até às pinturas recentes, realizadas a partir do Jardim Botânico da Ajuda, também em Lisboa. A representação é um jogo de memória e toda a memória é uma condição de sobrevivência.
Podemos quase imaginar o que Manuel Amado diz desse jardim de infância familiar:
«De noite, os jogos de jardim ganhavam um secreto fascínio: o fascínio do medo. Mas a alegria confundia-se com o medo e nunca recuávamos no labirinto da noite. O arrepio das folhagens nas pernas e no rosto tornava-se num arrepio de pele. Os joelhos, picados pela relva dura, sangravam mais adiante cravejados de saibro e de pó como a boca cravejada de dentes em riso aberto. Os calções rasgavam-se num arame, os gritos dos pavões soltavam-se ao mesmo tempo que os das crianças. Procurávamos um tesouro, procurávamo-nos uns aos outros nas sombras profundas de um bosque sonhado e verdadeiro. Estávamos longe das janelas largas, ao rés-do-chão, das quais saía a luz de um jantar já terminado, a surdina dos adultos em conversa, o cheiro de algum charuto, a música de um piano displicente. Nem o tempo nem o espaço exterior existiam.»
Manuel Amado estava no jardim encantado e era na harmonia intemporal desse lugar que havia de encontrar um tesouro para a resto da sua vida - por muito que a vida a levasse, a ele e às outras crianças, para longe dali.
Manuel Amado pinta agora o dia claro ou as sombras diurnas dos dias claros, luzes convencionais de um palco sem personagens.
Há um processo de trabalho lento em Manuel Amado. O carvão desenha massas indecisas de formas, a cor vai afinando os volumes e os contornos até à conclusão de uma imagem límpida e precisa que esconde todos os erros, todas as hesitações, todos os medos.
A claridade imperturbável que Manuel Amado hoje constrói, como se pudesse ser guardião de uma perfeição original, que não tem a ver com a história da pintura mas com a sua história individual, como se pudesse ser arauto de uma aurea mediocritas1 capaz de ser vivida mesmo na contemporaneidade mais agressiva, dá-nos, de facto, a ver lugares de impossível existência - e por isso, de infinita melancolia, de invisível mas permanente angústia.
1 Expressão famosa do poeta Horácio – significa que no meio é que está a virtude, a felicidade