Guilherme d'Oliveira Martins "Antes de começar" 2022

Diário de Notícias, 25  janeiro 2022
A obra do pintor Manuel Amado tem uma marca muito própria. Mais do que o arquiteto, evidencia-se quem procurou incessantemente a essência das coisas, dos espaços, dos caminhos e da humanidade que com eles se relaciona. Como disse José-Augusto França, «a técnica deste pintar é (...) lisa e impessoalmente serena, de luz igual, angular, na sua bastante aparência - como se nada o pintor quisesse acrescentar à imagem em si próprio nascida, na simplicidade dos elementos cenográficos, que outros não poderiam nunca ser». E Manuel Amado costumava dizer que a pintura «é o modo mais direto que existe para representar a realidade, considerando que a realidade somos nós que a fazemos. Sem interferência de palavra ou de ficções».

Quando, há dias, o «catálogo raisonné» foi apresentado na Fundação Gulbenkian por Mariana Pinto dos Santos, abrindo as diversas perspetivas que a obra nos proporciona, compreendemos a procura incessante pelo pintor do que se vê ao longe, com o cuidado de se libertar dos constrangimentos do tempo, que tanto intrigavam Agostinho de Hipona. Daí a consideração da pintura como meio de fazer parar o tempo e de suscitar a faceta onírica da memória. Ao percorrermos as obras de Manuel Amado, ao longo da sua vida, sentimos, a cada passo, a paixão da representação, a lembrança da casa antiga onde viveu a infância, hoje Museu da Cidade, e a presença de Fernando Amado, seu pai, professor do Conservatório, um dos fundadores do Centro Nacional de Cultura e criador da Casa da Comédia. E vem à lembrança o encontro com Lourdes Castro e a amizade intensa que estabeleceram. O certo é que em ambos sentimos a referência a um "teatro de sombras", como essência da dramaturgia.
Não é por acaso que encontramos Lourdes Castro com Manuel Amado, em 1984, no ACARTE, na Fundação Gulbenkian, quando se representou a peça Antes de Começar, de Almada Negreiros. E o título liga-nos à importância mítica do verbo começar - já que Almada também usou a palavra no termo da sua genial carreira, no átrio da Fundação Gulbenkian. Lourdes Castro chamou então para contracenar consigo Manuel, no papel da outra marioneta, o Boneco, no comovente elogio ao teatro. E a lembrança tem duas razões, uma a amizade e confiança que existia entre ambos, outra, o facto de Lourdes se lembrar de que Manuel fora o ponto na encenação de 1954, sabendo de cor todas as falas e deixas da peça. E a verdade é que esse ano tinha sido mágico e simbólico para Lourdes Castro, uma vez que foi então que fez a primeira exposição de pintura na velha sala do Centro Nacional de Cultura, com José Escada, já que participava no grupo de teatro de Fernando Amado. Anos passados, quando foi apresentada a série O Espetáculo vai Começar (2004-2007), Lourdes não se conteve e proclamou eufórica, em generosa lembrança de um companheirismo longo: «Aplausos, aplausos. O Manuel voltou ao teatro. Ao mundo do teatro. Ao teatro vazio.» E quando isto dizia lembrava, por certo, o diálogo inesquecível, bem na memória de ambos: «O Boneco - A luz não se engana! / A Boneca - Nós é que nos enganamos com a luz. / O B. - É assim que acontece com a luz (pausa). A B. - Ouve! Tu também sentes o coração dentro de ti muito grande... que não cabe dentro do peito? Ah! eu sou tão pequena! E o coração está dentro de mim à espera, pronto p’ra sair... pronto para dar-se... e a hora não chega!...». Ao relermos Almada Negreiros, entendemos a luz e as sombras que foram sempre os elementos fundamentais na obra de Manuel Amado – percorremos os seus caminhos e entendemos o elo frágil mas intenso que nos leva às sombras de Lourdes Castro, à paixão da representação e ao entendimento de que a obra verdadeira está na busca da essência da arte.

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian