Valeria a pena percorrer estes quadros para comprovar a necessidade que temos de parar para ver. A quietude destas nítidas visões não é sentimental, mas física. Fixam-se na tela, mediante camadas finas de tinta, simulacros de um mundo que está em vias de desaparecer. O pintor actua como um imobilizador... Os pintores "não esquecem, fixam, a memória funciona neles como uma imagem para todos os lados, onde se procura um centro para olhar e onde desagua uma mobilidade de centros”1.
Neste pintor, a memória não aparece sob a forma de rostos, a sua pintura constitui-se sempre numa relação com a luz e com os vários enquadramentos que delimitam e ao mesmo tempo dilatam o espaço.
Pinta-se para ver melhor, o recordar desentranha-se da ocularidade destas telas que apontam selectivamente para a paz e a preservação silenciosa dos lugares. Estas pinturas têm a vantagem de não serem poluídas pela figura humana, apresentam-se tendo como sujeito, a luz solar e o espaço modulado por uma rítmica itinerante de olhares sucessivos.
Estamos perante uma ecologia visual – que longe de nos espantar antes acentua as qualidades inerentes ligadas à matéria prima e ao luxo da luz atmosférica portuguesa que tem sido alvo do aproveitamento de vários cineastas estrangeiros.
Conjugam-se nesta pintura, designadamente duas pulsões: a escópica, que sem recorrer ao "sharp focus” dos hiper-realistas, materializa na tela uma "sensorialidade da mão” e um cinematismo que recorta o espaço em função da idealidade incorpórea da luz. Estas imagens são "imagens justas”, não surgem afetadas por qualquer devaneio literário – comprovam somente em pintura, o lado arquitectónico e aurático dos lugares e dos recantos que o olhar duplamente, ou em segundo trajecto revisita na pintura.
O olhar pictórico faz ecoar de quadro em quadro um mimetismo mental consentâneo com a frase lapidar de Fernando Pessoa: "quando quero pensar, vejo”2. Para Manuel Amado, a pintura, como ele próprio afirma, "faz-se apenas para ser vista, devendo corresponder às altas exigências inerentes à acção de ver”3. Só depois de ter conhecido a superfície das coisas – nos podemos aventurar a procurar o que está por baixo. A envolvência destes teatros de memória, recortados pela soleira da porta ou da janela traçam um vaivém contínuo entre o interior das casas e o exterior sem limites oceânico da natureza. A fusão entre estes dois universos, desenha nesta pintura a figura exemplar do "entreaberto”; a geometria pelo seu rigor formal de recorte, conjugada com os derrames de luz institui um volume plástico de tonalidade tangível.
A Ressonância e a Comunicação dos Espaços
Tudo se conjuga nesta pintura para que a luz se transmute e distribua na transparência da cor – o liso das paredes e o lustro que escorrega dos móveis, sublinha o carácter polido destas imagens, onde a depuração dos enquadramentos prossegue o seu diálogo em surdina com a luz.
O entendimento visual e a temperatura de cor que circulam nestes quadros, demonstram que o pintor Manuel Amado não é daqueles artistas, que com o andar dos tempos, perdem definitivamente de vista o que escapa aos olhos.
A óptica e a geometria continuam a ser gémeas nesta pintura. O espaço nunca é o da clausura, mas o de uma interioridade revisitada pela claridade excessiva do exterior, que o pintor filtra sabiamente, sem se deixar contaminar pelos clichés da actualidade. Manuel Amado não confunde a visão com o "visual”. O visual tornou-se num "valor comerciável, numa forma caricata ditada por preceitos de moda e de circunstância. O visual, aqui surge intensificado pela penetração reflexiva do olhar, não é reduzido ao tic de um reflexo, mas à sábia metamorfose das impregnações de tinta. VER, depende das hierarquias e das dosagens infinitesimais do claro-escuro – há uma mistura óptica na tela, conseguida à custa de finas pinceladas. O que fugazmente se vê comporta-se como um fluido, a cor não é sólida, mas fluente. A cor visível nasce, no fundo, do encontro de duas luzes, uma incorporada no corpo opaco e a outra espelhada pelo espaço diáfano. O visível é captado através do que A.Lhote chama "jogo dos écrans” e que define como uma sucessão de oscilações, um vaivém incessante de valores que não se anulam senão depois de ter dado ao espectador o sentimento de profundidade”4: "la lumiére n’éclairerait rien si rien ne lui faisait écran”. Intuição que já S. João de Cruz habilmente descrevera:
"A luz não é a que se vê por si mesma, mas o meio com que se vêem as demais coisas em que incida; e ela então, pela reverberação que nelas faz, também se vê, e se nelas não desse, nem uma nem outra se veriam; de tal maneira que, se o raio de sol não entrasse pela janela dum aposento e passasse por outra em frente, pelo meio do aposento, não topando em coisa alguma nem havendo no ar átomos em que reverberar, o aposento não teria mais luz que antes, nem o raio se chegaria a ver”5.
Consideramos então que a luz, enquanto color ou splendor, surge reflectida pelo corpo opaco contra o qual embateu, desenhando no espaço desta pintura clarões, projectando no chão o geometrismo da janela, como grelha paradigmática de todo o quadro – pelo menos desde Alberti.
Através dessa janela, o nosso olhar avança no espaço sem se ressentir do obstáculo que seria a superfície do quadro.
O modo peculiar que Manuel Amado tem de lidar com o espaço bem como os seus enquadramentos traz-nos sempre à memória o quadro de Edward Hopper intitulado "Quarto que dá para o mar”. Contudo, esta relação de afinidade não diminui a originalidade do pintor Manuel Amado, antes o coloca com a sua pintura, como um caso singular, situado entre a arquitetura da qual veio e a meio caminho do cinema que não fez, mas ao qual a sua pintura muito deve.
A memória das imagens adquire nesta pintura uma visualidade cromática, que expele uma luminosidade que nos incomoda pelo excesso mutante e efémero da luz solar. São, finalmente "pinturas de luz” captadas com um apurado rigor técnico e uma discreta sensibilidade que não destoa com a simplicidade e o modo leve com que M. Amado nos fala da sua pintura. Rigorosamente estas pinturas são imagens/ tempo, como diria Deleuze, cujos vincos a pintura desfaz num jogo ininterrupto de aparato e de ilusão. A pintura de M. Amado, sem incorrer na metáfora, abre a porta ao ver.
1 Molder, Maria Filomena, Jorge Martins, Imprensa Nacional, Lisboa, 1984.
2 Pessoa, Fernando, Livro do Desassossego, Ática, Lisboa, 1982.
3 Amado, Manuel, Artes Plásticas nº 12, Lisboa, 1991, entrevista de A. Almeida Brandão.
4 Brion- Guerry, L., Cézanne et l’expression de l’espace, Albin Michel, Paris, 1966.
5 Cruz, S. João da, Obras Completas, Carmelo, Aveiro, 1977.