Maria João Seixas Conversa com vista para – Manuel Amado 2007

Entrevista conduzida por Maria João Seixas
Revista Pública, nº558, 28 de Janeiro de 2007


Tem um olhar de menino. É um olhar azul, líquido, parecido com o mar que, por vezes, deixa entrar nos seus quadros. É discreto, quase tímido, gentil no modo e na palavra. Impôs-se no território dos pintores portugueses, pela perseverança com que se fez aos caminhos da pintura. Tudo começou a sério, na década de 70. Desde aí, nunca mais abandonou o seu mirante, dando-nos a ver, com uma regularidade sem pressas, novas obras, onde o recorte e a atmosfera dos espaços (interiores e exteriores, mas todos construídos pela mão de homens) se foram continuamente inventando.
Com formação de base em Arquitectura, Manuel Amado conhece as regras do estirador - rigor no traço, no desenho, na composição. Dessa disciplina, que entretanto abandonou, ficou-lhe o domínio e a precisão com que dá forma às formas que escolhe representar em quadros. Mas foi o sopro da pintura que o fez mudar de rumo na viagem iniciada. Parece que as suas telas nos querem sempre contar histórias, através das que soubermos inventar para os jardins, ou para os quartos, ou para as janelas que traz até ao nosso olhar. São histórias propostas em forma de perguntas: quem passou por aqui? Quem abriu esta porta? Quem se sentou nesta cadeira? Esvaziada, quase sempre, de figuras humanas, a sua pintura, plácida e bela, pode sugerir melancólicos expositores de cenas de vida sonhada. Mas o que ela mais faz é pedir-nos para ser levada até ao lugar da nossa imaginação e das nossas memórias. Pede-nos que sejamos nós a fazê-la habitada. Gostando de construir cenas, o pintor aposta nas encenações de quem olha para os seus quadros e lança-nos para o palco dos seus assuntos. Será lá, na tela, que os seus passam a nossos assuntos. Seremos nós a povoar os quadros. Experimentem ir à galeria do Rei D. Luis, no Palácio da Ajuda, ver a sua última exposição — "O Espectáculo Vai Começar...". Tendo o teatro como único tema, os 50 quadros que lá se podem ver fazem-nos lembrar peças a que já assistimos, actores que gostámos de ter aplaudido, textos maravilhosos que nunca mais esquecemos, bastidores que não pudemos visitar, corredores que, um dia, nos levaram até ao camarim mais reservado e apetecido, Experimentem.

Manuel, diz-me quem és.
— O que me apetece dizer é que sou um português, natural desta ponta periférica da Europa, que desde muito cedo se apaixonou pela pintura (por acaso, estudei e formei-me em Arquitectura, área em que trabalhei durante muitos anos, mas a pintura também não andava longe). Essa paixão não só se mantém, como se foi tornando mais intensa com o passar do tempo. 

Desde muito cedo?
— Sim, mas foi pouco a pouco. Desde miúdo convivi com o mundo das artes, com os livros de pintura que havia lá por casa, com os amigos do meu pai, quase todos artistas. O Almada e muita gente do teatro eram uma presença constante entre nós. Mas o interesse a sério começou a desenhar-se com o curso de Belas-Artes. Fazia parte de um grupo que arranjou um atelier, onde nos encontrávamos para a conversa, para ouvir música. Havia por lá uns cavaletes, pincéis e tintas, e comecei a pintar. Pessimamente, porque não só não sabia nada de nada, como era, aparentemente, o que tinha menos jeito. Fui insistindo e, em Angola, durante a tropa, pintei dois ou três retratos para passar o tempo, até que me aconteceu fazer um quadrinho, que me deu um estalo na cabeça, fiquei excitadíssimo quando o acabei e pensei — isto vai ser o meu caminho! Foi verdadeiramente o meu primeiro quadro, feito com muito esforço, porque continuava sem saber de pintura, mas foi ele que me guiou, que tomou conta de mim. Dei-o a um amigo, perdi-o de vista.
Para não perderes de vista o que vês, dado que pintas regularmente espaços — jardins, quartos, janelas para o mar, etc. —, andas sempre com um caderninho e um lápis por perto?
Sim, desenho muito, faço desenhos para ir tendo uma ideia de futuros quadros. Mas é na tela que o verdadeiro desenho acontece. No princípio dos meus princípios como pintor, muito antes de pensar sequer em vir afazer exposições ou em tornar-me profissional, fazia tudo por memória. A memória era mesmo o que me interessava: coisas de infância, casas, impressões, a recordação de uma certa luz a entrar por uma janela... Depois, pouco a pouco, comecei a ligar-me mais ao que via. Utilizava muitas vezes o registo fotográfico, como grande parte dos pintores, mas a memória continuava lá atrás, a trabalhar a ideia para os quadros. Nunca deixou de ser o meu filão. Somos todos feitos de memória, não há nada mais importante, mais inspirador.

A tua primeira exposição individual aconteceu em que ano?
— Foi já nos anos 70, creio que em 78, a convite do Cruzeiro Seixas, que dirigia na altura a galeria da Junta de Turismo da Costa do Sol, no Estoril. Eram 20 quadros, que não estavam à venda. Tinham sido todos recolhidos das mãos da família e de amigos. Trabalhei 25 anos como arquitecto, com horário e ordenado fixo. Nos últimos dez anos desse período já pintava com regularidade, paralelamente ao emprego de base. Até que se tornou impossível a acumulação, faltava-me energia para dar bom cumprimento aos dois lados e foi então que decidi optar pela pintura e fazer dela a minha única profissão. 

A marca da formação e da experiência como arquitecto está bem presente nas tuas telas. Sobressai como uma espécie de dominante em grande parte dos temas da tua pintura.
— Claro, isso tem de se tornar evidente, até porque pinto muitos espaços construídos. Talvez não seja só pela representação dos espaços que essa dominante se torna clara para quem olha para os meus quadros, mas pelo próprio conhecimento que tenho dos materiais e dos objectos com que a arquitectura lida, conhecimento que ganhei com a prática de muitos anos. Sei como é uma janela, uma porta, um chão, uma parede, um móvel... 

Quando rompes para o exterior é o arquitecto nostalgicamente paisagista que fala mais alto por ti?
— Não. Sou sempre o mesmo pintor na variação dos meus temas. O desejo de pintar árvores aconteceu tarde no percurso da pintura que faço. Os jardins são paisagens construídas de que gosto muito, e é por gostar tanto delas que as trouxe para a tela. São uma construção humana especial, muito especial. Basta olharmos com atenção, para logo vermos composições magníficas, seja de uma árvore solitária, de um tufo de arbustos ou de um conjunto de árvores, da mesma ou de diferentes famílias. Nunca tive pretensões de fazer "paisagismo", de resto, a minha relação com a arquitectura foi sempre distanciada e relativamente fria. Quando estive empregado como arquitecto, o prazer maior que senti foi trabalhar em planeamento e colaborar na organização dos planos dos concelhos. Desses projectos, gostava.

Tens a hábito de visitar museus?
— Sim, só me irritam aqueles museus saídos de uma espécie de moda, creio que já com tendência para acalmar, em que o projecto arquitectónico e a profusão de elementos de grande espectacularidade que o habitam fazem os impossíveis para distrair o olhar do visitante de ver, com serenidade e atenção, as obras de arte expostas. Razão principal para a existência de qualquer museu. Fora este aparte, tenho desde há muito o hábito e o gosto de ir a museus, sempre que posso. A museus e a galerias. Gosto de descobrir pintores e quadros com que ainda não me tenha cruzado e gosto muito de revisitar os já conhecidos e admirados.

Algum eleito entre os eleitos?
— Há um muito especial, que só descobri quando já tinha começado a pintar —Edward Hopper. Essa descoberta foi um deslumbramento. Senti que ele era assim como um primo mais velho, alguém da família próxima, um membro da minha tribo de pintores. É um grande, grande pintor. Ninguém, como ele, conseguiu, crua e intensamente, trazer à tela o drama da solidão americana. Ninguém, como ele, chegou tão longe na representação de toda a carga desse drama.

Na tua pintura sente-se muito o lado da encenação. Cada tela é como que uma "cena", embora raramente a representação da figura humana esteja lá, o que acentua a solidão do teu gesto de pintor. Mas parece que esperas que o olhar de quem olha para os teus quadros seja capaz de imaginar uma narrativa pessoal, com personagens a entrar e sair dos quartos, a passear nos jardins, a pasmar diante do mar.
— Dizes bem, os meus quadros são "cenas". Tenho perfeita consciência de que são encenações. Sou de uma geração formada pelo cinema, para quem a linguagem das imagens e dos sons em movimento é fundamental para o modo como pensamos, como vemos o mundo e o representamos. De facto, são poucos os quadros que fiz com figuras humanas, mas existem. A Teresa assoma, aqui e ali, em alguns deles. A seguir a esta exposição (monotemática, em torno do universo do teatro), que está neste momento no Palácio da Ajuda, tenho outra preparada, para o fim do ano, em Cascais. Essa será uma exposição alargada, com coisas antigas, outras mais recentes; numa das secções, quero justamente mostrar alguns dos retratos que pintei e uns poucos quadros com pessoas.

De encenação em encenação, cena a cena, chegaste a esta grande homenagem ao teatro. Chegaste pela mão das tuas memórias do teatro, expressas na magnífica mostra da Galeria de Pintura do Rei D. Luís, em Lisboa. Sendo alguém formado pelo cinema, qual é o lugar do teatro em ti?
— É um legado maior do meu pai, que amava o teatro de um modo absoluto. Foi o seu amor de toda a vida. Dedicou-se sempre ao teatro, mas, como era uma pessoa muito especial, fazia também outras coisas extraordinárias.

Antes de viajarmos pelas tuas memórias do teatro, fala-me desse legado tão extraordinário que o teu pai, Fernando Amado, deixou aos filhos.
— O meu pai era um personagem raro. Uma pessoa verdadeiramente especial. Para teres uma ideia, até fez uma tabela de atletismo, que foi considerada, durante anos, a melhor do mundo. Por ser de um português, de um país com um governo que não defendia o valor destas descobertas, essa tabela nunca foi oficialmente reconhecida, por exemplo, pelos Jogos Olímpicos.

Uma tabela de atletismo?
— É a tabela que estabelece as pontuações aplicadas ao pentatlo e ao decatlo. São provas que incluem modalidades diversas, mas que têm de ser comparadas, para se poder atribuir as respectivas classificações. O jornal francês "L'Équipe", um dos melhores do mundo sobre atletismo, interessou-se muito pelas tabelas do meu pai. O espantoso é que ele fazia estas coisas por carolice, por gostar imenso de atletismo e por considerar que era importante ajudar, adequando e equiparando os valores das diferentes provas. Mas a grande paixão nunca deixou de ser o teatro. Formado pela Faculdade de Letras em Geografia e História, nunca perdeu de vista esse amor maior. Foi o fundador da Casa da Comédia, mas antes teve de fazer os seus primeiros espectáculos, durante dois anos seguidos, num teatro que já desapareceu, o Ginásio. Mais tarde, com o Osório de Castro, conseguiu finalmente um espaço para instalar a sua sala, a Casa da Comédia. Era um espaço pequenino, ao pé do Museu de Arte Antiga. Os anos foram passando, o meu pai ficou mais cansado, adoeceu, e a Casa da Comédia passou para as mãos do Filipe La Féria. Tinha também dirigido o Teatro Universitário da Faculdade de Letras e ainda um outro teatro, só para raparigas; no Conservatório de Lisboa, foi professor de teatro. Do que ele mais gostava não era tanto dos espectáculos já em cena, mas de todo o trabalho de preparação e montagem até à estreia, sobretudo dos ensaios. Escreveu e encenou muitas peças, mas a grande excitação vinha dos ensaios. Há tempos, o Couto Viana, que foi amigo do meu pai, embora mais novo, contou-me uma história que eu desconhecia: estavam no Teatro do Salitre a ensaiar uma peça, escrita e encenada pelo meu pai; num certo dia dos ensaios, os actores do elenco deram-se conta de que o meu pai estava já no palco a ensaiar, mas os "actores" eram a empregada da limpeza, o porteiro, a senhora da bilheteira. Era do que ele gostava, de experimentar fazer teatro com toda a gente. Se alguém passava por perto, era logo apanhado. 

Faziam "teatrinhos” em casa?
— Não tenho ideia. Onde comecei a fazer teatro foi no Colégio Moderno. O Manuel Lereno era contratado para preparar as festas de teatro no colégio. E olha que se montavam peças novas, duas ou três vezes por ano. Eu não falhava nunca os ensaios. Fartei-me de representar em miúdo, até aos meus 18 anos. Houve mesmo um momento em que representava no Colégio Moderno e, ao mesmo tempo, no Teatro do Couto Viana. Podia ter ido para actor, mas como o teatro profissional desse tempo fazia-me algum medo, por volta dos 18 anos, afastei-me.

O trabalho de cenografia não te interessava?
— Muito, interessou-me sempre muito e ainda fiz alguns trabalhos, poucos em relação ao que gostaria de ter podido fazer. Cheguei a cenografar uma peça para o meu pai, o que me deu um enorme prazer. Deveria ter talvez feito mais força nessa direcção e até ter-me tornado um profissional de cenários, mas não aconteceu.

No passado dia 17 foi inaugurada na galeria do Rei D. Luís, no Palácio da Ajuda, a exposição a que chamaste "O Espectáculo Vai Começar...". Actores e público estão de novo ausentes da tua representação, mas o teatro está lá todo, melancolicamente sugerido. Parece uma cartografia, feita em cumprimento de uma promessa antiga.
— Pois... As minhas últimas exposições foram por temas — jardins, estações de caminhos-de-ferro, etc. Mas é sempre uma pintura que não tem nenhuma literatura por trás. São imagens, feitas de encontros e de recordações, que se calhar evocam nos que olham para as minhas telas outros tantos encontros e recordações. Não há qualquer outra carga para além das coisas representadas. Pela primeira vez, agora, com os teatros, é um bocadinho diferente. Essa diferença reflecte-se também nos títulos que dei aos quadros. Não é que tenham uma história, ou até talvez tenham muitas, mas há uma carga específica, feita da memória do teatro, que não era costume acompanhar o que antes pintei. Não sei se é uma carga poética, talvez seja. O Helmut Wohl, quando viu estes quadros, falou-me de uma profunda reflexão sobre o que é a essência do teatro. Comoveu-me ouvi-lo dizer isso. Gostei muito que estes quadros me tivessem acontecido. Sei, para mim claramente sabido, que o gesto da pintura é de uma natureza especial, que nada tem a ver com o pensamento, com a palavra, mesmo quando esta é figurada. Quando se pinta, está-se apenas a pintar. Nos quadros desta exposição também foi isso que aconteceu, mas senti uma necessidade nova, a de dar um "empurrão" com os títulos, para a pessoa não estar distraída a olhar para o quadro. Na tua questão falas em "promessa antiga". Não diria assim, mas o certo é que há muito tempo que tinha o desejo de fazer qualquer coisa sobre teatro. Está feita. E com muito gozo, como referiste.

É uma celebração? Uma homenagem? Um reencontro com um tempo da vida em que o teatro habitava as horas dos teus dias?
— Suponho que é tudo isso junto. Sonhamos sempre o sonho do retorno. Como disse Mefistófeles, no "Fausto" de Goethe: "O paraíso é aquele sítio onde a pessoa cresceu."

Foi longo o pintar destes quadros?
— Demorou uns três ou quatro anos, mais tempo do que os trabalhos para as anteriores exposições. Também esta é maior, são 50 quadros. As outras mostravam, em média, cerca de 20 telas. 

Lembras-te de qual foi a primeiro, aquele que deu verdadeiramente o mote, como se te apresentasse uma guia de marcha?
— Comecei pelo canto de um cenário, com umas labaredas verdes, recordação de cenários do meu tempo de miúdo, feito para uma representação de teatro infantil. Depois, ficou ele próprio a um canto, durante algum tempo, à espera que os outros chegassem. Mas a convocação tinha sido feita, por ele, pelo quadro do canto de um cenário infantil. Até chegar aos 50 quadros.

Demoras-te na preparação de telas e tintas?
— Antigamente, só largava um quadro quando o dava por terminado. Agora já não, vou saltando de tela para tela. Posso começar um novo, enquanto um outro, ou mais do que um, já iniciados, ficam de lado a repousar, até chegar o momento de voltar a eles e repegar-lhes, partindo muitas vezes para uma direcção diferente da inicial. A certa altura fico rodeado de várias telas já começadas e são elas que, a pouco e pouco, me vão indicando o caminho, me vão enviando sinais para serem acabadas. Quanto à preparação das telas, não sou nada um oficinal de grande perfeccionismo— uso tintas e telas que há á venda no mercado, e gosto de pintar com pincéis de pêlo de boi. Prefiro os de uma determinada marca, e é tudo. Aprendi comigo e acho que consigo chegar onde quero com as técnicas que fui desenvolvendo e com os materiais que fui encontrando e que me servem. Tenho vários cavaletes, mas trabalho essencialmente com dois. Começo sempre por desenhar a carvão; a seguir pinto umas aguadas com aguarrás, é o arranque, ainda com pouca gordura; com essas primeiras camadas de tinta continuo a desenhar; depois, se for caso disso, até vou às linhas verticais e horizontais com um T e esquadro de arquitecto, e então é que começo a dar as camadas que vão levar à resolução final do quadro. É sempre muito por camadas, muito finas, com pouca tinta, em velatura. Quanto a dimensões, não pinto quadros nem muito pequenos, nem enormes. Há medidas que considero correctas para as telas poderem ser usufruídas da melhor maneira, sem exigirem um esforço de aproximação excessivo e sem, por outro lado, esmagarem o espaço onde ficarem colocadas. Especialmente se for em casas particulares.

Sabes, sem mistério, que um quadro ficou terminado?
— Quando me sinto satisfeito, faço os acabamentos que considero necessários para o meu nível de acabamento e dou por terminado o quadro. Não há grande mistério.

O último gesto é sempre a assinatura?
— Normalmente, é. Nunca gostei de assinar os quadros pela frente. Achei sempre que se estragava qualquer coisa do que tinha sido feito.

Envolves-te na apresentação e disposição dos quadros quando fazes exposições?
— Ah, sim. Gosto que as telas sejam expostas em paredes simples, se possível brancas, com espaço em volta para poderem respirar. Não gosto de encenações complicadas, com a presença de elementos que façam distrair o olhar de quem vê uma pintura. Nesta exposição fiz apenas uma intervenção — uns muretes (relativamente pequenos) em duas das salas maiores, só para dividir um bocadinho o espaço e não ficar a parecer tão grande. De resto, as paredes estão branquinhas e as telas têm ar á sua volta. Respiram.

Temos estado a falar de pintura. Mas o que é a pintura?
— Acho que foi o Gauguin quem disse: "Pintura é uma superfície coberta de cores." É realmente isso, mas é também, e sobretudo, muito mais do que isso. Porque é o resultado de uma infinidade de gestos, pequenos ou grandes, em que há opções, há escolhas, há emendas, há rasuras, há o voltar atrás, há o recomeçar, e isto ao longo de uma série de tempo até ao resultado final. É um corpo-a-corpo, entre o pintor, a tela, os pincéis e as tintas. A pintura carrega sempre com ela essa enorme carga física da entrega do artista.

Nesse corpo-a-corpo, pode acontecer o quadro autonomizar-se do gesto do pintor?
— Creio que sim, como deve acontecer noutras áreas de criação. Os escritores falam de como às vezes já não estão à frente do texto, já correm atrás dele. Com a pintura passa-se o mesmo.

A propósito de "O Espectáculo Vai Começar...", diz-me agora o que é o teatro.
— O teatro é o conjunto do público e da cena. Tudo o que é humanidade, tudo o que é arte, é comunicação. O teatro é uma realidade completa. Criada pelo homem, essa realidade é uma forma de comunicação levada a uma especialidade máxima.

Dá-me uma palavra de eleição.
— Não te importas que seja em forma de um pequeno diálogo inventado? Diz isto: — "Olha que pintura tão bonita. Quem é que a pintou? — Foste tu."