Caso decidíssemos delinear uma genealogia das obras de Manuel Amado ao longo dos últimos vinte e três anos, no caso da presente exposição teríamos de começar pelos painéis do Baptistério e da Piazza della Signoria, em Florença, que Filippo Brunelleschi pintou no início do quattrocento para demonstrar a perspectiva artificial. Ambos os painéis se perderam; mas foram descritos nos finais do século XV numa biografia de Brunelleschi escrita pelo seu amigo Antonio Manetti, que em 1470 fora descrito por Benedetto Dei como sendo um dos mestres florentinos da perspectiva.
A perspectiva não foi uma invenção da Renascença. Fora conhecida na Antiguidade, tendo atingido um alto grau de sofisticação nas arquitecturas trompe-l’oeil de murais pintados em Pompeia e Boscoreale durante o reinado de Augusto. Nos finais da Idade Média, a perspectiva era estudada por filósofos e teólogos como um ramo da óptica, mas no início do século XIV tornou-se parte do vocabulário formal dos pintores para a representação do mundo visível.
O que distinguia os sistemas perspectivais da Antiguidade e da Idade Média dos de Brunelleschi e Manuel Amado era o facto de que os primeiros operavam com vários pontos de fuga, e os segundos com um. As inovações de Brunelleschi foram a definição de uma linha de horizonte e
a colocação nesse mesmo horizonte de um ponto de fuga central que servia de foco unificador e organizativo para a representação de objectos tridimensionais simulados que iam diminuindo à medida que se aproximavam desse ponto, dentro de um espaço tridimensional simulado, matematicamente coerente e aparentemente mensurável.
O método de construção de um sistema perspéctico segundo as regras de Brunelleschi foi formulado teoricamente pela primeira vez em 1435 por Leon Batista Alberti. A perspectiva, contudo, era apenas uma parte da definição de pintura de Alberti. Inseparavelmente ligada a ela estava aquilo que Alberti descreveu como a "recepção da luz”, ou seja a representação realista da luz dentro do espaço tridimensional projectado da imagem, acompanhada pela distribuição da luz e da sombra pelas superfícies dos objectos em conformidade com a forma como vemos objectos na natureza, de modo a produzir aquilo as que os autores renascentistas chamavam relevo, a ilusão da tridimensionalidade dos objectos. Contudo, Alberti não via a perspectiva e a representação realista da luz como fins em si mesmas. Em vez disso, serviam a istoria, que considerava o objectivo fundamental da pintura, definindo-a como a representação de uma acção de forma a que o espectador a sentisse emocionalmente e psicologicamente como se estivesse a desenrolar-se num palco diante dos seus olhos.
A representação da istoria é algo que não interessa Manuel Amado, estando assim ausente do seu trabalho. Contudo, no que respeita à perspectiva e à representação da luz e sombra, as suas pinturas seguem as directrizes de Alberti, sendo neste aspecto comparáveis aos embutidos de madeira (intarsio; pl. intarsi) e pinturas de vistas arquitectónicas da Renascença italiana. O painel da Cidade Ideal (Museo Nazionale delle Marche, Urbino), pintado por um artista florentino de c. 1500, constitui um excelente exemplo. Desprovidas de narrativa ou conteúdo humano, estas obras, particularmente os intarsi arquitectónicos renascentistas, apresentam afinidades flagrantes com as igualmente vazias e silenciosas telas de Amado. Em La vie des formes, Henri Focillon descreveu tais afinidades como "famílias mentais”, relações que segundo ele confirmavam a sua teoria de que uma das formas em que o impulso criativo se manifesta na arte é o facto de que artistas em diferentes lugares e tempos, sem conhecimento do trabalho uns dos outros e em contextos distintos, conseguem chegar a invenções e soluções formais semelhantes.
No entanto, existem também diferenças inerentes entre as vistas arquitectónicas de Manuel Amado e as dos intarsi renascentistas, diferenças que dão uma ideia do abismo que separa a Renascença e o século XX. Nas representações perspectivais da Renascença, as vistas arquitectónicas desempenhavam uma função primariamente decorativa. Eram admiradas como ornamentos, e apreciadas pela invenção e virtuosidade dos seus truques matemáticos e efeitos de trompe-l’oeil. Tais factores exercem muito pouca, ou mesmo nenhuma, influência nas imagens perspectivais de exteriores ou interiores arquitectónicos pintadas por Manuel Amado, nem na forma como ele as concebe, nem na forma como as vemos. "No meu tempo de pintar”, escreve ele, "existe apenas a consciência do esforço de encontrar os sinais luminosos que imitam aquilo que todos nós sabemos sem termos bem a certeza de o saber”. Pinta, escreveu também, "para tentar ver melhor [o que me lembro de ter visto], para ter a certeza”.
As afirmações dos artistas – vejam-se, por exemplo, os escritos de Mondrian — devem ser abordadas com cautela. Não acreditem no artista, acreditem na narrativa, avisou-nos D. H. Lawrence; a tarefa do crítico é salvar a narrativa do artista que a criou. Não obstante, as palavras de Manuel Amado sobre o seu trabalho devem ser levadas a sério. Sugerem-nos que, enquanto o equilíbrio estético das suas pinturas as dota de convincente serenidade e beleza, o seu objectivo ao criá-las é menos ornamental que filosófico e menos decorativo que existencial, no sentido em que nelas e através delas procura autenticar as suas percepções e memórias visuais.
A procura da autenticidade da experiência individual é um projecto da modernidade, não da Renascença. A Renascença olhava para o mundo com suprema confiança na razão humana e na possibilidade de impor uma forma racional à irregularidade da natureza. Hoje, sentimo-nos menos seguros disso. A primeira manifestação dessa insegurança na arte deu-se com as pinturas de Cézanne, conforme explica Maurice Merleau-Ponty no seu famoso ensaio "A Dúvida de Cézanne”. Na arte do século passado, a dúvida e a incerteza tiveram muitas e variadas expressões, nomeadamente o Cubismo de Bracque e Picasso, que punha em questão a validade da tradição perspéctica ao projectar directamente sobre a superfície da imagem as formas fragmentadas e interpenetrantes de objectos; ou as pinturas metafísicas de Giorgio de Chirico, onde mistério, enigma e paralisia pairam sobre as perspectivas precariamente inclinadas e os contrastes hipnoticamente opressivos de luz e sombra em estações de caminho de ferro vazias, torres abandonas e praças desertas. As pinturas de Amado partilham o mesmo silêncio e atmosfera nostálgica das de Chirico.
A lógica e coerência das vistas arquitectónicas da Renascença sugerem que o mundo não poderia ser representado de uma forma que não a sua. São compostas a partir da perspectiva de um observador ideal, um ponto de vista que permite ao artista descrever com clareza e manter o controlo da totalidade que está no seu campo de visão. A representação perspéctica de um edifício na arte renascentista poderia servir de modelo para a sua construção. As pinturas de Manuel Amado não mostram mais de uma fachada, sala, corredor ou escadaria do que um observador consegue ver de perto. Ao contrário das composições da Renascença, onde perspectiva, luz e sombra estão ao serviço da objectividade da interpretação e coerência visuais, as imagens nos quadros de Amado, muitas vezes apresentadas num ângulo oblíquo e cortadas pelo enquadramento de maneira a serem, não estruturas inteiras de objectos, mas partes ou fragmentos destes, são reflexões subjectivas sobre o que o artista viu ou lembra ter visto.
Neste aspecto, as pinturas de Amado são emblemáticas de uma mudança na natureza da visão que ocorreu depois da Renascença. O modelo renascentista de visão era o sistema geométrico e matematicamente fundamentado da perspectiva linear – desde o final da Idade Média e ao longo da Renascença a palavra italiana para "óptica” era prospettiva – com o seu ponto de vista ideal, relações matemáticas fixas e supressão da experiência visual subjectiva. Nos inícios do século XIX, este sistema geométrico e impessoal de visão perspéctica, com as suas verdades objectivas e regras imutáveis, deixou de ser válido ou útil num mundo em rápida mudança. O novo modelo de visão que se desenvolveu no decurso dos anos de 1800 era fisiológico e subjectivo. Tendo como objectivo primário o processo de percepção em si, transferiu a visão para a experiência visual subjectiva do observador.
O principal veículo e agente primordial desta forma moderna de visão tem sido a fotografia. Devido ao facto que o fotógrafo pode enquadrar e compor o seu tema a partir de um ponto de vista à sua escolha – de perto, de longe, acima de, abaixo de, de frente ou de través – a fotografia criou um novo tipo de imagem que depende do ângulo de onde é vista e do momento exacto – Henri Cartier-Bresson chamou-lhe "o momento decisivo” – em que o fotógrafo faz disparar o obturador, fixando esse momento em película como uma mosca em âmbar.
À volta da segunda metade do século XIX, os pintores – Degas e Caillebotte vêm-nos imediatamente à ideia – começaram também a assimilar a influência da fotografia, compondo quadros de acordo com a forma subjectiva de visão fotográfica. Manuel Amado seguiu as pisadas desses artistas. A sua definição clara e precisa de formas e padrões de luz e sombra sobre muros, umbrais, janelas ou escadarias, vistos de frente ou de um ângulo, vem também da linguagem da fotografia. A foto que Andre Kertesz tirou em 1926 ao patamar do estúdio de Mondrian em Paris (Chez Mondrian) é uma ilustração particularmente clara de tal.
Tal como um fotógrafo, embora livre das limitações da câmara ou do processo fotográfico, Manuel Amado dedica os seus recursos pictóricos a criar a ilusão de um momento em que a luz ilumina e lança sombras sobre as formas nas suas pinturas, num ângulo específico e com um padrão e intensidade igualmente específicos. A pureza de meios com que realiza essa ilusão é evocativa das formas geométricas depuradas e superfícies lisas da arquitectura vernácula portuguesa. Os frutos desta concentração e pureza, deste "encontrar os sinais luminosos que imitam aquilo que todos nós sabemos sem termos bem a certeza de o saber”, são a clareza e segurança com que as pinturas realizam o objectivo do artista: ver melhor o que ele já viu (e nós também já vimos). O sortilégio de silêncio e nostalgia que imbui estas imagens, como se nada nelas tenha sido ou deva ser perturbado, sob pena de quebrar esse sortilégio, sugere que são diálogos privados e pessoais não apenas com o que o artista viu, mas também com lugares – quartos, corredores, muros, degraus, terraços – que ele conheceu há muito tempo atrás, num passado que, embora praticamente desaparecido, persiste na sua memória – e nas suas pinturas.