Muito se tem dito sobre a quietude que reina nos quadros de Manuel Amado. Não tem sido notado que essa quietude envolve um paradoxo, ainda que só aparente, que dá a esta pintura uma qualidade moderna e portuguesa: a existência simultânea de presença e de ausência, de eloquência e de ineloquência. A modernidade dos quadros está em que eles apresentam uma realidade que seria vazia de sentido, se não a investisse de sentido a nossa consciência individual subjectiva, ou a nossa fantasia.
Numa entrevista recente Manuel Amado expõe a questão com clareza: «A pintura é o modo mais directo que existe de representar a realidade, considerando que a realidade somos nós que a fazemos e que, assim, a sua representação se transmite directamente, de mente a mente, sem interferência de palavra» (o itálico é meu).
O carácter português da obra de Manuel Amado é imediatamente aparente para quem quer que tenha estado numa rua, numa casa, na plataforma de uma estação de comboios ou no campo de, quase se pode dizer, qualquer região de Portugal, especialmente a leste e sul de Lisboa. Também disso se tem falado, mas não exactamente nos termos em que eu o vejo. Se eu quisesse nomear a característica fundamental, talvez mesmo o tema fundamental, da pintura de Manuel Amado, chamar-lhe-ia a expressão da «saudade», no sentido em que a definiu António José Saraiva: «O sentimento chamado saudade caracteriza-se pela sua duplicidade contraditória: é uma dor da ausência e um comprazimento da presença, pela memória».
Na mesma entrevista Manuel Amado declarou que o estimula a pintar «tudo o que eu vejo quando estou em sossego. Ou melhor, é a memória daquilo que vi em sossego. Posso mesmo dizer que pinto para tentar ver melhor aquilo que já vi, para ter a certeza. E gosto muito quando acontece que outros me dizem que é assim que eles se lembram de ter visto».
Um exemplo clarificador de quadros que procuram fixar a memória do que o artista viu em sossego é a série de telas desta exposição que representam o interior de uma casa que não tem habitantes permanentes e que está quase sempre vazia. É habitada, de tempos a tempos e por diferentes ramos da mesma família. É ao mesmo tempo uma casa com gente e sem ninguém. Pela sua natureza paradoxal, ambígua, torna-se um assunto natural para Manuel Amado. O silêncio que percorre os quartos não é perturbado pelo som de vozes ou de passos. As cadeiras, mesas, camas, candeeiros, as sombras que projectam e a luz que se lhes derrama em cima e em torno falam de ausência, não apenas no sentido de vazio, mas também da ausência do pintor, que ali, nas formas de uma presença plástica, lúcida, dá corpo, à memoria do que viu em perfeito e ininterrompido sossego.
As tradições formais e pictóricas em que se insere a pintura de Manuel Amado ligam-se, em primeiro lugar, à sua formação de arquitecto e prática da arquitectura, prática que abandonou, há cinco anos, para passar a dedicar-se inteiramente à pintura.
Mas também há fortes afinidades entre a sua obra e a de artistas do passado recente e longínquo: Giorgio de Chirico; artistas italianos do Quattrocento, especialmente Piero della Francesca e os desenhadores de painéis embutidos mostrando perspectivas arquitectónicas; e ainda, e no que toca ao enquadramento, recorte e luz, cineastas como Alfred Hitchcock e Michelangelo Antonioni. O artista disse-o de maneira simples e concisa: «Foi em África, durante a tropa, com saudades das minhas realidades longínquas e empurrado por Chirico, pelo cinema e de um modo geral pela pintura antiga italiana, que encontrei o princípio do meu modo próprio de fazer pintura. Desde então, e até hoje, o caminho tem sido sempre o mesmo, o meu».
As formas geométricas, as composições de perspectiva e as sombras dos quadros de Giorgio de Chirico influenciaram artistas tão diversos como o belga Renè Magritte e o americano Edward Hopper. A pintura de Manuel Amado tem ligações tanto com a linguagem pictórica de Hopper como com a de Magritte. É tão verdade de Magritte e Hopper como o é de Manuel Amado que o seu «caminho tem sido sempre o mesmo». Uma vez que desenvolveram o seu estilo próprio, nunca se afastaram dele. No entanto, a sua dívida para com de Chirico é apenas uma componente desse estilo.
Magritte deve pelo menos outro tanto às imagens e à teoria surrealistas. As suas fontes são tão verbais como visuais. Atinge os seus objectivos artísticos por meio de trocadilhos e de trucagens inesperadas. Muito antes de que a desconstrução se tornasse uma moda na crítica, Magritte desconstruía a relação entre os objectos, as imagens e as palavras. Uma imagem de um cachimbo não é um cachimbo. E porque haveria essa imagem de ter o título «Isto não é um cachimbo» em vez de «Canção de amor»?
Hopper tem as suas mais profundas raízes na tradição do realismo americano do fim do século dezanove e começo do vinte. O seu tema principal é o tédio da vida urbana americana à qual, como «o pintor dos tempos modernos» de Beaudelaire, confere uma dimensão de heroísmo.
A pintura de Manuel Amado é menos complexa e mais directa do que a arte quer de Hopper quer de Magritte. Os seus temas são mais inocentes e íntimos. Seduz-nos e fala-nos num plano mais puramente visual. Numa palavra, é mais próxima de percepções e de sensações imediatas que, como o próprio artista diz, ele tenta pintar «sem interferência da palavra… para tentar ver melhor aquilo que já vi, para ter a certeza.»