Algures, «sentado ao balcão do silêncio», um poeta (António Franco Alexandre, 1974) escreveu:
«porque celebro a luz e te encontro e te abraçoI have the words»
E agora, ao viajar por esta Lisboa segundo Manuel Amado, são esses versos que me ocorrem porque aqui é de silêncio que é feita a voz da cidade, «sem interferência de palavras ou de ficções», como disse o próprio pintor a propósito de toda a sua obra.
1.
Cidade substantiva, diria eu ao vê-la assim, tão admiravelmente cingida à mais estrita sintaxe de luz e sombra, tão despojada de eloquência. Parada, sem personagens, sem símbolos e sem alegorias, é, como se vê, uma Lisboa habitada por muros e objectos traçados a rigor.
Cidade substantiva, diria eu ao vê-la assim, tão admiravelmente cingida à mais estrita sintaxe de luz e sombra, tão despojada de eloquência. Parada, sem personagens, sem símbolos e sem alegorias, é, como se vê, uma Lisboa habitada por muros e objectos traçados a rigor.
Sem gente e sem voz (as coisas falam por ela) tem uma serenidade discreta a envolvê-la, uma serenidade doméstica que se continua através de ruas e de praças abertas que a luz ou o enquadramento tornaram fechadas numa intimidade inesperada.
Tudo aparece aqui numa suspensão inocente e tudo, por isso mesmo, surpreende e faz interrogar. Uma fila de cadeiras ordenadas numa sala sem mais nada ou uma abertura a meia porta sugerem algum mistério à realidade que lhes está por trás devido à extrema simplicidade da sua evidência. O óbvio provoca novas leituras, é o caso, e, do mesmo modo, também a evidência da exactidão arquitectónica com que o pintor descreve, por exemplo, os edifícios da Rua do Comércio, os transfigura numa altivez pública, quase renascentista.
2.
Rigor de traço e de luz. Contar sem estória nem figurantes. O milagre é esse: como no poema de António Franco Alexandre, em Manuel Amado o silêncio faz-se palavra pela celebração da luz. Vai mais longe: confere vida à cidade com a discretíssima insinuação de poesia e de segredo que paira nesse mundo deserto de personagens. Nesse mundo como que suspenso em registos do passado, quero eu dizer. Mas, embora deserto, não há nele sinais da solidão urbana que se estende desde os labirintos vociferantes da Babel até ao frio desencanto das metrópoles pós-modernas, ou desde o universo da estatuária de Chirico à desolação resignada de Edward Hopper. Não, a Lisboa que agora percorremos é feita de espaços, muros e objectos estáticos mas com alma. Paisagens ou recantos descritos com uma precisão tão intencional que cada quadro nos surge como uma interrogação à nossa memória.
Rigor de traço e de luz. Contar sem estória nem figurantes. O milagre é esse: como no poema de António Franco Alexandre, em Manuel Amado o silêncio faz-se palavra pela celebração da luz. Vai mais longe: confere vida à cidade com a discretíssima insinuação de poesia e de segredo que paira nesse mundo deserto de personagens. Nesse mundo como que suspenso em registos do passado, quero eu dizer. Mas, embora deserto, não há nele sinais da solidão urbana que se estende desde os labirintos vociferantes da Babel até ao frio desencanto das metrópoles pós-modernas, ou desde o universo da estatuária de Chirico à desolação resignada de Edward Hopper. Não, a Lisboa que agora percorremos é feita de espaços, muros e objectos estáticos mas com alma. Paisagens ou recantos descritos com uma precisão tão intencional que cada quadro nos surge como uma interrogação à nossa memória.
3.
Fechadas em si mesmas, estas imagens do real objectivo tornam-se obras abertas que povoamos com figuras ou com experiências do passado que elas nos suscitaram. Assim, da transfiguração que o artista operou pela eliminação da presença humana e da estória que a situa na leitura da cidade, resulta uma outra transfiguração processada pelo leitor.
Fechadas em si mesmas, estas imagens do real objectivo tornam-se obras abertas que povoamos com figuras ou com experiências do passado que elas nos suscitaram. Assim, da transfiguração que o artista operou pela eliminação da presença humana e da estória que a situa na leitura da cidade, resulta uma outra transfiguração processada pelo leitor.
Exacto. «Em cada ponto do itinerário é possível estabelecer uma relação de afinidades ou de contrastes que sirva de evocação à memória», diz Italo Calvino em As Cidades Invisíveis. E aqui está porque é que a Lisboa de Manuel Amado é também a Lisboa in absentia que os seus quadros nos propõem. Para lá daquela mala solitária a meio dum quarto vazio, entrevejo o viajante anunciado de Álvaro de Campos «na véspera de não partir nunca». Na sala da barbearia em domingo lisboeta, não há vivalma, mas ouço a voz de Alexandre O'Neill a tesourar versos traquinas.
Da «Milady, tão nobre e tão de sala» cantada por Cesário Verde chegam-me agora notícias ao imaginá-la a passear-se por aquele Pátio do Campo Grande de belas árvores podadas que o pintor foi buscar à infância. E imagine-se, adiante, noutro quadro, admito que o Alves da Tabacaria esteja ainda vivo: posso vê-lo da janela do quarto de Fernando Pessoa ou à porta daquele prédio de azulejos, tão de Arroios, tão Campo de Ourique. Finalmente, ao descobrir uma Praça do Comércio sem os lugares-comuns dos cacilheiros e as colunas à beira-Tejo suspendo-me: Deus, como em dois traços, num recanto apenas, estamos longe da província citadina de Botelho e da cenografia dos futuristas lisboetas.
De quadro em quadro, de casa em casa, de rua em rua, a Lisboa de Manuel Amado vai-se-nos tornando mais íntima. Tão íntima e tão secreta como a dificílima luz com que ele movimenta esta sua cidade num esvoaçar de sombras recortadas com a precisão dum geómetra. Saio para a rua, levanto o olhar. A luz é outra, mas, demorando-me nela, descubro que é uma versão da luz de Manuel Amado que estou a olhar.