Catarina Alfaro Manuel Amado 2016

Texto referente à exposição:
O Verão era assim como uma casa de morar onde todas as coisas estão… – Casa das Histórias Paula Rego, Cascais, 2016


O Verão era assim como uma casa de morar
onde todas as coisas estão…
agora tens de sair do teu coração
e como na planície andar.
A grande solidão começa,
os dias ficam surdos como portas,
dos teus sentidos o vento à pressa

leva o mundo como folhas mortas.

Rainer Maria Rilke, O Livro de Horas, Assírio e Alvim. Lisboa: 2008, p. 175.



O critério da selecção de pinturas de Manuel Amado, agora apresentadas na Casa das Histórias Paula Rego, ou seja as possibilidades de agrupamento e relação deste universo de imagens, traça-se livremente por Paula Rego, não sendo motivado por um qualquer programa curatorial de apresentação das obras de acordo com uma visão sistemática ou metodologia de selecção pré-estabelecida. Embora se possam agrupar em torno de uma temática comum - os espaços vazios mas habitáveis das casas, ou dos palcos e camarotes dos teatros -, estas obras, realizadas entre 1975 e 2008, confluem apenas na indagação sobre um sentido que nasce das coisas (o enigma de Nietzsche ou o demónio de Heraclito).

"Estes quadros possuem todos uma simplicidade ameaçadora”, afirmou Paula Rego, enquanto escolhia as pinturas. Não há dúvida de que a obra de Manuel Amado se constrói a partir de um mistério que é, à partida, simples: as coisas normais vêem-se sob um ângulo diferente, e por isso os modos de concepção da subjectividade na apreensão do mundo podem tornar-se a verdadeira fonte do enigma. Cada uma destas pinturas será, então, um exercício de percepção do invisível no visível da obra. A sua pintura não restitui o visível mas torna visível. Em pintura, como paradigmaticamente afirmou Klee, não se trata de reproduzir ou inventar formas, mas sempre de um exercício de captação de forças. É por isso que nenhuma arte é figurativa, sendo a tarefa da pintura definida como uma tentativa de tornar visíveis as forças que não o são1: "a luta com a sombra é a única real. Quando a sensação visual afronta a força invisível que a condiciona, desprende-se dela uma força que pode vencer esta, ou então fazer dela uma aliada”2.

As forças invisíveis presentes na pintura de Manuel Amado são, em primeiro lugar, as suas ligações afectivas aos espaços que habitou e que são reveladas através da memória, não fotográfica, mas uma memória reconfigurada que contém ressonâncias que derivam do passado e do presente, do momento em que esses espaços estão a ser relembrados pelo artista, através da pintura. Mas podem a vida, o tempo e as suas memórias serem tornados visíveis? Marcel Proust, na sua obra À la Recherche du Temps Perdu, aludiu à memória involuntária, distinguindo-a da memória voluntária que ilustra ou narra o passado. A memória involuntária, que segundo o autor contém a essência do passado, funciona de um modo completamente
distinto, juntando duas sensações que existiram em diferentes níveis do corpo e que se apreendem uma através da outra, a sensação do presente e a do passado, surgindo algo que era irredutível a qualquer uma delas3. Assim se estruturam estes espaços criados por Manuel Amado, a partir de zonas de confronto, de sensações divididas, que se readequam umas nas outras, precisamente como notou Paula Rego, "É como se ele pintasse para erradicar um fantasma, algo que nunca conseguirá fazer”.

Nestas obras convivem o aspecto espectral e o momento eterno, o lugar do tempo imóvel que se instala nas diversas divisões das várias casas que o pintor habita ou habitou, recuando às memórias da sua infância. São os lugares identitários, de recolhimento e de intimidade, mas também relacionais porque é neles onde se estrutura o seu microcosmos familiar e a sua relação com o mundo e, sobretudo, com a pintura. Repare-se que a única figuração humana e verdadeiramente assumida é a da sua mulher, Teresa Amado, numa obra de 1996, intitulada A Teresa a dormir. Mas esta presença humana não tem um carácter ilustrativo ou narrativo, e surge entre uma amálgama de lençóis da cama onde está deitada, como se fosse reclamada pela luz que invade o quarto. Já as três obras do Quarto de Fernando Pessoa sugerem a presença do poeta através dos seus reconhecíveis adereços, a gabardine e chapéu depositados em cima de uma cadeira, não conseguindo apagar os vestígios da sua existência naquele lugar imutável e moldado apenas através das vibrações da luz solar.

O teatro, com os seus palcos e cenários, é para Manuel Amado um outro lugar identitário, um segundo modo de relação com o outro e consigo próprio. Esta sua afinidade com as artes do palco foi-lhe transmitida, desde a infância, pelo seu pai4. Com efeito, no final dos anos 50 iniciou-se como actor no Teatro Universitário, vindo mais tarde a colaborar com Lourdes Castro na peça de Almada Negreiros Antes de Começar, apresentada no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian em 1984. A sua experiência enquanto cenógrafo é manifesta nas três pinturas aqui exibidas em que o artista representa imageticamente o teatro. Mas também podemos encontrar elementos cenográficos, de trompe-l’oeil, instalados na realidade dos espaços vividos em casa, como acontece na obra A Sala, de 2008, os quais acrescentam algo de perturbador à aparente ordem e serenidade da vivência doméstica.

É o olhar perspectivo de Manuel Amado – sempre presente na estruturação destes lugares interiores, não fosse ele arquitecto de formação académica – que torna visíveis as espessuras da luz e da cor; do palpável e do intangível destes espaços relembrados e revividos, em que tudo é simultaneamente íntimo e estranho. O elemento comum e estruturante da perspectiva introduz na sua pintura a ressonância de todas as imagens – físicas e psicológicas – do lugar habitado. A perspectiva, etimologicamente, é uma visão através de alguma coisa, uma visão penetrante – por oposição à contemplação de uma opacidade intangível - que exige um acordar dos sentidos. A perspectiva pertence a uma visão artística que alterna a criação com a reconfiguração de imagens. Sendo um elemento da figuração pré-existente, também pode reverter as relações que se estabelecem entre o modelo e a cópia. E Paula Rego alerta-nos também para este elemento inquietante: "As pinturas são todas muito formais. São composições muito lisas. As sombras, a composição, evocam o trabalho de Edward Hopper, mas muito mais claustrofóbico e perigoso”. É também a ausência de materialidade destas pinturas, sem sequer vestígios da viscosidade do óleo, que acentua a sua estranheza. Não há lugar para a informalidade, há maior definição de planos, através do domínio da perspectiva.

Os títulos destas obras convocam os lugares representados, as escadas, as salas, os quartos com e sem os seus adereços distintivos, os corredores ou camarotes, como se explicassem a imagem. São instrumentos de mapeamento e mecanismos de aparente decifração dos lugares e estimulação das imagens. Mas, por serem meramente descritivos e por vezes redundantes, apenas duplicam a ameaçadora simplicidade das imagens, para a qual Paula Rego nos previne. Muitas vezes, como nas obras Ainda não chegou ninguém, de 2004, ou na série do Quarto de Fernando Pessoa, de 1993, estes títulos acabam por acentuar a carga dramática da ausência, da tensão entre o destino natural destes espaços habitados apenas pela memória involuntária do artista e a presença/ ausência do mesmo. 

Mas estas imagens de instabilidade ou permanência, de singularidade ou repetição são também imagens quase sempre solares de um espaço intimamente conquistado.

1  Gilles Deleuze, Francis Bacon: The Logic of Sensation (tradução inglesa), Continuum, 2003, Nova Iorque/ Londres, p.56. Primeira edição, em França: Francis Bacon: Logique de la sensation, Editions de la Différence, 1981.
2  Ibidem, p. 62.
3  Ibidem, pp. 68-69.
4  Vide Biografia.