Rosa Alice Branco O percurso como horizonte do possível na pintura de Manuel Amado 2002

Texto referente à exposição:
Manuel Amado, Pintura - Galeria Antiks Design, Lisboa, 2002

Na linguagem comum, o ver é muitas vezes sinónimo de compreender como se através da visão nos apropriássemos do sentido das coisas. E poderíamos pensar que os trabalhos pictóricos seriam o paradigma, o espaço óptimo para que visão e sentido se fundam.

Porém, a obra de Manuel Amado aparece-me como um trompe l'oeil do que dá ostensivamente a ver. O acesso ao seu universo pictórico necessita, pois, de um trabalho em que o olhar reflecte e se reflecte sobre a visão primeira.

Desembaracemo-nos, então, desta visão de relance, do que ela parece oferecer de mais evidente, para, seguidamente, podermos percorrer os caminhos que Manuel Amado abre para nós. 

O que nos toca à primeira vista - e digo, à primeira vista - é aquilo a que poderíamos chamar a influência, tout court, da arquitectura nos seus trabalhos, o que nos levaria a considerações biográficas, já que a sua formação é de arquitecto.

Um outro aspecto, focado por quase todos os comentadores da sua obra, é o facto de a figura humana estar, praticamente, ausente da sua pintura.

Mas o aspecto mais saliente é a rigorosa imobilidade. Por isso as referências recorrentes a De Chirico, e a impressão de que os seus trabalhos sobre objectos, na sua nudez parada, fazem lembrar Morandi.

Assim, por maior que seja a abundância de detalhes, coexiste com esta um despojamento inquietante.

Passemos, pois, ao segundo momento que requer, quanto a nós, uma abordagem simultaneamente antropológica e fenomenológica, já que, por um lado, a obra respira a vivência de lugares e, por outro, Manuel Amado conduz-nos, de uma forma não óbvia, é certo, a regressar às próprias coisas, num sentido rigorosamente husserliano.

Percorro Manuel Amado de imagem a imagem. Na sua pintura nunca é meio-dia, porque a sombra persegue os objectos, penetra o horizonte.

Frequentemente a sombra aparece com contorno e consistência de objecto, transformando os objectos na sombra da sua sombra. O ser é, pois, sombra, e é esta que nos banha. E também a luz que entra por entre os orifícios /artifícios pictóricos ganha a mesma consistência e desenha formas que focalizam a nossa atenção. A luz e a sombra são assim elementos estruturantes, já que se transfiguram em matéria, deixando a low profile do fundo para se virem instalar no espaço de primeiro plano da nossa atenção, num jogo perpétuo entre fundo e forma. Este ênfase, este privilégio concedido à forma do vazio evoca em nós o modo como os japoneses dão relevo ao MU, intervalo espacial e temporal, um nada produtivo, de tal modo que consideram de importância a forma do espaço vazio entre os objectos materiais, tal como é patente, por exemplo, nos jardins Zen .

Mais do que um sentido dado, os trabalhos de Manuel Amado questionam a produção da obra, e a partir desta, interrogam o facto pictórico, em geral.

Então, nesta imobilidade, Manuel Amado aparece como um pintor desinstalado, quer, para cada momento pôr em causa as regras de uma pintura «figurativa», quer por destabilizar e subverter a relação entre o espectador e o olhar.

De facto, estamos perante uma obra «arquitectónica». Mas existirá na sua pintura uma influência da formação académica, ou o fascínio que tinge a sua obra será simplesmente o mesmo que o fez escolher a arquitectura como um modo de criação e significação dos espaços?

Existe em Manuel Amado um modo verdadeiramente singular em que estes espaços se organizam enquanto lugares vividos, pois é o modo arquitectónico, i.e., a passagem sub-reptícia da segunda para a terceira dimensão que é condição de possibilidade da entrada do corpo em cena, cena que constrói volumetricamente, o que parece entrar em contradição com a ausência da figura humana nos seus trabalhos e com a imobilidade tocante dos espaços de arte factuais.

Uma nova contradição parece decorrer da primeira, já que esta imobilidade parece anular a dimensão temporal veiculada pela entrada do corpo na cena pictórica.

Entremos pois nas regras, sempre provisórias, do seu jogo.

Mais do que os objectos, o que e objecto do interesse pictórico de Manuel Amado são os espaços inamovíveis, aqueles que estruturam os nossos passos, como as escadas, as portas e janelas, muitas vezes com portadas. Mas o que são escadas, portas e janelas? São operadores de conexão do espaço, são operadores de percursos e discursos. São os elementos estruturantes daquilo a que Gaston Bachelard chama a dialéctica entre o exterior e o interior. O que faz uma casa e a possibilidade permanente do entrar e sair, pois sem esta possibilidade a casa deixaria o seu ser - casa para ser uma prisão. Assim, a obra de Manuel Amado coloca diante de nós o horizonte e este é um horizonte infinito de possibilidades.

O que faz de nós seres vivos, ou se quisermos, humanos, e a perspectiva, quero dizer, o horizonte como abertura espacial e temporal. O horizonte das nossas expectativas funda-nos mais do que o fechamento do presente, pois o que é o presente sem perspectiva, o que somos nós sem o horizonte dos possíveis?

Vamos mais longe, onde poderíamos estar situados na pintura de Manuel Amado? Onde poderia ele introduzir a figura humana? Rigorosamente em lugar nenhum. E compreendendo isto, subitamente percebemos que se a figura humana não está presente na pintura de Manuel Amado, é porque o pintor tem uma profunda compreensão da nossa humanidade. Em todo a ser há uma casa com raízes e uma ave migratória. Somos seres móveis, possuímos o dom de podermos fluir de perspectiva em perspectiva através da errância. Somos seres de vagabundagem pelos espaços, tentando abrir os horizontes do olhar, desmultiplicar os espaços vividos. Olhamos pela janela e vemos o mar. Basta uma pequena deslocação para alterar a visão do mundo que vemos da janela, já que uma das funções da janela, aliás bem patente no oriente, é de enquadrar vistas. É através da porta que nos sentamos sobre as raízes da casa, e através dela que saímos de nos próprios para o desconhecido.

Onde poderia o pintor situar-nos? E quem situaria?

A pintura de Manuel Amado e a infinita possibilidade de eu - ou – qualquer - outro – no – meu - lugar poder percorrer, deambular, ocupar a poltrona vazia. Mas a poltrona só está vazia como horizonte de possibilidade de alguém se sentar e levantar. E contudo a poltrona não está vazia. A sua textura não é simplesmente dada pelo material de que é feita. Sentada na poltrona a forma da luz tecida pela forma e molduras da janela. A luz desenha os lugares, habita-os, como uma impressão fundadora e fugaz. Por exemplo, o quarto de Fernando Pessoa muda em função da luz, torna-se outro de si mesmo, tal como o próprio poeta.

Mas cabe à sombra desempenhar, frequentemente, o papel da luz como elemento pregnante do primeiro plano da nossa atenção, subvertendo e desestabilizando as regras pictóricas. E também aqui voltamos a reencontrar De Chirico, na justa medida em que também este projecta a sombra para o primeiro plano, sombras oblíquas, triangulares que invadem o espaço primeiro da tela. E tal como nele, a tinta se transmuta em ambiente, contaminação do interior pelo exterior, mas em de De Chirico o espaço inabitável, incongruente, pela subversão das regras da perspectiva através da multiplicidade dos pontos de fuga.

Sob a imobilidade, sob a ausência, emerge a infinita possibilidade de habitar o espaço em plena liberdade.

Assim, Manuel Amado aparece como um pintor descentrado, pois se não existe um logocentrismo da figura pintada, ou do espectador, como nos quadros de Hopper, tão pouco aparece a perspectiva do autor. Porém, não podemos dizer que este é o demiurgo de um mundo que nos abandonou a uma liberdade cega, porque a sua mão nos guia subtilmente, nos oferece uma discordância de percursos.

Não é de espantar que poetas tenham escrito sobre os seus trabalhos, já que, de um certo modo, estes se aproximam mais do modo poético, em que nunca se exprime literalmente o que está nas linhas, pelo que, também a sua pintura requer um trabalho de entre-linhagem.

E o tempo na obra de Manuel Amado diz-se no gerúndio, na continuidade. Não será por acaso que pinta Teresa a dormir, ou Teresa dormindo, já que só no dormir é suposta a imobilidade, mas o sono é também e sempre, veículo do sonho.

É certo que existem referências recorrentes à pintura de Manuel Amado como desenho de espaços de memórias. Mas a memória pode também ser a memoria de um futuro, ou como diria Whitehead, do actual, que nunca é presente já que engloba em si a concrescência dos tempos. E se Leibniz afirma que o presente está prenhe de futuro, também a memória se recria para tecer novas memórias através dos percursos que nos propõe. Passos passados e passos futuros coexistem nos trabalhos de Manuel Amado. Vestígios e vislumbres. Nunca instantâneos fechados no espaço e no tempo, mas desdobramento, ondulação. O mar que inunda as raízes das casas, ou o mar visto da janela, ou o mar que vê a janela, continua a ser o horizonte de possibilidades que abre para nós todos os caminhos a fazer, como no poema tão conhecido de Antonio Machado.
E tal como ele, Manuel Amado nos diz: «caminante no hay camino, se hace el camino al andar».