Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.Estou hoje lúcido, com estivesse para morrer,E não tivesse mais irmandade com as coisasSenão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da ruaA fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitadaDe dentro da minha cabeça,E uma sacudidela dos nervos e um ranger de ossos na ida.Estou hoje perplexo, com quem pensou e achou e esqueceuEstou hoje dividido entre a lealdade que devoÀ tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,E a sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Fernando Pessoa [Álvaro de Campos]
As pinturas de Manuel Amado mantêm o real e o imaginado sob um equilíbrio tenso: a quididade densa, opaca das coisas é contraposta a uma calma inquietante, onírica, que parece questionar precisamente a existência dessas coisas. Uma preocupação com o tempo e o som percorre estas obras, assim como o interesse pelo espaço que é o seu «tema» mais evidente. É como se um quarto, ou uma praia, ou uma viela nos fossem apresentados num filme, em câmara lenta, numa moldura imóvel, com a banda sonora desligada. De facto, o tempo parece ter sido suspenso na própria realização destes quadros: não apenas no sereno manejo que oblitera os traços do envolvimento físico do artista na sua feitura, como também na completa negação da diacronia, de uma progressão estilística linear através do tempo. Trabalhando em torno de constelações de temas, os interesses pictóricos actuais de Manuel Amado são essencialmente os mesmos que expressou nos finais dos anos 60, e são diferenciáveis, quando muito, fundamentalmente pela escolha do motivo.
Estes motivos são tão absoluta e inequivocamente portugueses que suscitam em qualquer um que já tenha visitado ou vivido nesse país uma sensação de déjà-vu, um suspiro de reconhecimento. No entanto, a sua qualidade melancólica, meditativa, recria um mundo não tanto perdido como imaginado. Este mundo é um mosaico, um bricolage, de elementos familiares observados e depois lembrados - o padrão de treliça verde dos azulejos alinhados nas paredes de estações de comboio, as balaustradas de ferro forjado e os portões de pedra de mansões imponentes, a oliveira projectando a sua abreviada sombra do meio-dia na praça deserta de uma vila, as janelas de correr de habitações urbanas, as barracas de praia às riscas... Evitando a ideia de um genius loci específico, cada cena parece no entanto destilar algo essencialmente português. As Estações de Comboios, de meados dos anos 80, evocam inúmeros locais de paragem em vilas sonolentas, branqueadas pelo sol, meio esquecidas, por todo o país, com os seus horários caducados, o comboio invariavelmente atrasado várias horas, a mala de alguém deixada na plataforma...
Não há nada de forçadamente nostálgico ou pitoresco, nem mesmo de um mistério ou agoiro deliberado, nestes quadros. Na verdade, uma das marcas do trabalho de Manuel Amado é a ausência de deliberação. Despretensiosos, sem a preocupação com noções de «estilo», eles esboçam um universo que parece reter tanto quanto expõe, prometendo uma narrativa que nunca chegam de facto a revelar. Pois, tal como o tempo real é dissolvido num momento perpetuamente presente na recusa do artista em tornar visível a fabricação (a construção da estrutura através das pinceladas), também o tempo ficcional é mantido em suspenso. Os indícios temporais - tenham eles a forma de traços de um modus vivendi ou as marcas do tempo deixadas pelo clima ou pela deterioração - estão inteiramente ausentes. Esta ausência, esta minimalização e esvaziamento resultam tão-só de um programa estético quanto do facto de o artista trabalhar exclusivamente a partir da memória.
A formação e longa prática de Amado como arquitecto (actividade que abandonou em 1987 para se dedicar exclusivamente à pintura) legaram-lhe não apenas um rico vocabulário de formas mas também uma facilidade na articulação desse vocabulário. Este facto obviou a necessidade de trabalhar in situ ou a partir de fotografias, deixando desse modo o artista em liberdade para inventar, para sonhar. O seu olhar perspicaz para o potencial sugestivo ou quase-narrativo dos espaços construídos (quartos vazios, pátios interiores, escadarias) é reforçado por uma paixão antiga pelo teatro. O seu pai, Fernando Amado, foi um dramaturgo, e na sua juventude, o artista pintou cenários para os seus espectáculos; a grande casa onde viveu até aos 19 anos incluía até um pequeno teatro. É a experiência formativa de viver nessa casa, o Palácio Pimenta - agora Museu da Cidade de Lisboa - que tem animado a pintura de Manuel Amado até hoje; a mansão do século XVIII, rodeada de um vasto terreno, havia sido comprada pelos seus avós, e apesar das três gerações que viviam sob esse tecto, uma grande parte dela sempre permaneceu vazia. É a memória destes quartos vazios, silenciosos - exalando possibilidade, à espera de serem habitados, primeiramente a arena dos jogos de infância, mais tarde o refúgio da sonhadora solidão adolescente - que silenciosamente espreita nos quadros de Manuel Amado.
Para além destas primeiras memórias, é talvez o cinema que, ainda mais que o teatro, deixou a sua marca no trabalho do artista, não apenas nas sequências de «molduras» vazias e de molduras-no-interior-de-molduras - portas, janelas, espelhos - mas também no contínuo desdobramento de sombras lançadas por objectos ou pessoas que estão fora da moldura do quadro e que ocupam a posição do próprio espectador. Este jogo com a ténue fronteira que separa a ausência da presença deve muito ao uso cinemático da «câmara subjectiva», por exemplo de Hitchcock; por outras palavras, é a câmara que se coloca - e que desse modo põe o espectador quase literalmente - nos sapatos do protagonista, subindo lentamente atrás dele ou dela um lance de escadas sombrias até abrir uma porta que range... Embora tudo sugira que as paredes desses quartos foram testemunhas de segredos e histórias, medos e desejos, elas permanecem irredutivelmente mudas. Na pintura de Manuel Amado, o assombroso sentido de ausência é raramente encenado; de facto, é muitas vezes tão lacónico e reticente que contraria todas as tentativas de aí se lerem narrativas. Se os quartos desnudados ou as barracas de praia encostadas umas às outras nos tentam com o luxo de conseguirmos explicar as sugestões de presságio e ameaça, eles também nos negam a fácil gratificação e a derradeira banalidade ou sentimentalismo que tal acabamento de sentido invariavelmente nos traria. As cadeiras de repouso desocupadas, diferentemente das cadeiras vazias de Van Gogh, não reificam ou simbolizam um qualquer ser humano ausente. (Basta pensar na contiguidade de pessoas e coisas, aquilo a que Pessoa chama a sua «fraternidade», para compreender o choque súbito provocado pelo contacto com objectos pertencentes a alguém morto não há muito tempo ou que partiu recentemente). Pelo contrário: é como se alguém sentado numa cadeira num terraço com vista sobre o oceano tivesse entrado dentro de casa para buscar, digamos, um jornal; apenas esse momento de ausência foi estendido a uma pausa eterna, interminavelmente suspensa, esquecida pelo próprio tempo.
Se a pintura de Manuel Amado sugere um certo parentesco com os primeiros trabalhos de de Chirico e Magritte, talvez os precedentes mais óbvios estejam numa tradição americana que se estende de Winslow Homer e Thomas Eakins até Edward Hopper e, mais tarde, Andrew Wyeth. É a Hopper - a quem o artista admira - que mais prontamente nos referiremos quando falamos sobre Manuel Amado.
E no entanto, a afinidade aparente com Hopper é, de muitas maneiras, enganadora. O interesse de Manuel Amado pela «portuguesidade» é intrinsicamente diferente do interesse de Hopper pela «americanidade». O estilo discreto, sem emoção de Hopper e as suas composições descentradas sugerem uma preocupação com as especificidades do espaço e do tempo - por vezes irónica, por vezes pungente - que são estranhas ao trabalho de Amado. Enquanto que as pinturas de Hopper têm uma tensão de expectativa, de um sentido inquieto de espera por uma chegada que pode nunca vir a ocorrer, é abandono e partida que pairam sobre o trabalho de Manuel Amado. De modo ainda mais significativo, Hopper desenvolve pontos de vista que convidam certas respostas somáticas do espectador. Estes pontos de vista só são plausíveis se se supuser não apenas a posição espacial do espectador em locais muito específicos, mas também o próprio corpo do espectador em certas atitudes: olhando por uma janela num quinto andar de um bloco de apartamentos, encostado à janela de um comboio em movimento, rastejando na relva ou sentado no balcão mais alto de um teatro. Assim, os trabalhos de Hopper não invocam tanto o olho desencarnado da perspectiva Albertiana quanto aquilo a que Norman Bryson chama o «corpo espectante», a «persistência do corpo enquanto termo privilegiado» dentro da economia visual do sistema representacional.
As composições de Amado, por outro lado, são habitualmente desenhadas a partir de um ponto frontal privilegiado: o ponto de visão quase nunca é oblíquo, e o espaço organiza-se em torno de um raio cêntrico (a linha que corre do ponto de visão até ao ponto de fuga) que frequentemente quebra o espaço pictórico simetricamente. Luz e sombra, enquanto protagonistas principais, tornam-se virtualmente palpáveis: o seu jogo mútuo é quase abstracto, estabelecendo uma série de tensões que operam na superfície do quadro, convidando a um envolvimento óptico, mais do que somático, da parte do espectador. (É como se - ampliando a metáfora cinemática - a «câmara subjectiva» usasse como ponto de partida apenas o olho do espectador e não toda a sua experiência somática). O olhar do espectador - na realidade, ambulante, oscilante, esquadrinhador - é aqui suspenso: torna-se um olhar hipotético, ficcional, que abarca tudo o que é espasmódico e acidental no olhar real, encarnado. Todas as coisas têm o mesmo peso, um foco igual mas banhado pela luz da memória; não é um foco nítido, «fotográfico». Antes, há um nível lacónico de omissão do pormenor. Deste modo, efectua-se uma ruptura não apenas com o tempo «real» da durée, mas também com o espaço «real» da percepção. Vistas de perto, as pinturas não revelam uma impermeabilidade radical; antes, a tinta é aplicada em véus finos, translúcidos, que conferem aos quadros a sua luz trémula, impregnando-os com uma vivacidade inesperada.
Jean Baudrillard falou da transubstanciação do homem moderno nos objectos que fabrica e nos espaços que habita. O espaço humano, do modo como é definido e articulado pela arquitectura, actua como analogia do próprio corpo humano. Baudrillard compara a casa moderna, com a sua obsessão pelas linhas limpas e dispositivos de economia de espaço (a cada objecto o seu espaço alocado, e vice- versa), ao corpo hipocondríaco, com a sua obsessão pela circulação de substâncias e a funcionalidade dos órgãos principais. Se é este o caso, então o mito do «velho» espaço doméstico, enquanto oposto ao «moderno», pode ser equacionado com a opacidade das mensagens, dos becos sem saída, com o romance do corpo integrado que não teme a doença, indiferente à intercomunicabilidade dos seus canais, verdadeiramente excêntrico no sentido etimologicamente preciso da palavra (ex-cêntrico). É a este corpo hipotético, ficcional, integrado, que as pinturas de Manuel Amado são destinadas.
Assim, somos confrontados com pinturas que revelam a intermutabilidade de sonho e realidade, ambos acentuando e negando a materialidade preponderante das coisas; pinturas que subtilmente conduzem o olhar ao qual são dirigidas, um olhar ao mesmo tempo desencarnado e mantido prisioneiro por um corpo expectante, idealizado. Acima de tudo, estes quadros desafiam-nos com o enigma da própria visibilidade.