João Lima Pinharanda Teatro do Impossível 2006

Texto referente à exposição:
O Espectáculo Vai Começar - Palácio Nacional da Ajuda, Galeria de pintura do Rei D. Luís, Lisboa, 2007

Sejamos sinceros: não temos teatro, tal como não temos Deus: para isso é preciso comunhão. Cada um tem as suas ideias e receios específicos e apenas mostra aos outros o que lhe convém e agrada. Vamos reduzindo continuamente o nosso entendimento até atingir o mínimo necessário, em vez de gritarmos contra a parede de uma aflição comum, atrás da qual o inconcebível tem tempo de se concentrar e intensificar.
Rainer Maria Rilke, Anotações de Malte Laurids Brigge


Uma vasta trupe de columbinas e arlequins, de pierrots e polichinelos, de scaramouches e pantaleões ocupa teatros vazios, seus palcos, camarotes, bastidores e camarins. Mas afinal, essas figuras pintadas não são sequer representações ilusionísticas de seres vivos – são apenas os seus recortes, são manequins imobilizados. Todos os espaços e elementos em seu redor («reais» ou «de cena») se transformam em cenografias de uma acção paralisada no tempo, muda, vazia, perpassada por uma infinita e incómoda melancolia – alguma coisa se suspende e morre perante os nossos olhos quando percorremos estas pinturas.

A pintura de Manuel Amado parece enfrentar com serenidade e sem angústia o que poderemos imaginar como a sua própria sentença de morte – sentença ditada por ser pintura, num contexto discursivo que, repetida e insistentemente, a nega; e por, deliberadamente, parecer ignorar os resultados dos ataques mais decisivos desferidos pelas sucessivas vanguardas históricas às tradições semânticas e técnicas da arte representativa. Avançar neste terreno minado sem vacilar é um particular exercício de coragem. O pintor avança surdo ao que se diz e mudo face à necessidade de responder. Mas, principalmente, exige-se-lhe a prova da cegueira: que ele avance cego ao que lhe dão a ver. O pintor surge então não como alguém que vê mas como alguém que recorda o que viu, alguém que faz ver, que ficciona o que vê. A coincidência entre a extensão de tempo que cada uma das imagens de Manuel Amado nos dá (ilusão do seu infinito prolongamento) e a impossibilidade de presentificação dos lugares que nos mostra (muitas vezes reconhecíveis da nossa própria experiência do real) é um dos eixos significantes da sua pintura – as imagens estão ali para sempre mas nem por um instante as podemos ocupar, recuperar, viver.

Manuel Amado coloca-se no centro de uma cenografia panóptica fechada em seu redor. Imagina uma grande construção cujas paredes se cobrem de imagens diversas e o seu corpo individual coincide com o que o rodeia. Abrindo os olhos dentro desse universo (dentro de si) encontra os temas que pintar. Usando as matérias próprias e fazendo os seus gestos de pintor, constrói as imagens de que gosta/necessita. Podemos dizer que elas permanecem imunes às imagens contaminadas da/pela realidade exterior ao sistema operativo e criativo de que se serve. Manuel Amado não faz tais imagens alheado, nem alienado da realidade histórica – perfeitamente consciente dessa realidade, fá-las, precisamente, contra o ruído do mundo. Não existindo naturalidade mas construção nas suas imagens, a sua pintura é uma arquitectura de formas que não exibe mas que também não finge a inexistência de uma ideologia.

Trata-se sempre de uma pintura de representação cenográfica, ou seja, cenários preparados para uma representação dentro da representação. Porém, até à presente série O Espectáculo Vai Começar..., para além do próprio autor (que permanentemente habita os seus cenários/por eles é habitado) e de nós mesmos, que em cada um deles podemos projectar a imagem de um sonho individual e/mas impossível de concretizar, não havia na pintura de Amado re(a)presentação de actores. Havia jogos de luz/sombra que definiam o tempo pelas horas do dia, delicados equilíbrios entre as ortogonais e os pontos de fuga, linhas de horizonte marítimo ou linhas de chão. Tudo isto marcado por janelas e portas (abertas, fechadas, entreabertas à luz), por um espaçado mobiliário interior e urbano, por padrões de azulejos e gradeamentos, renques de arvoredo ou arbustos, finalmente, por árvores isoladas, fragmentos de coisas. Sempre se tratou de uma pintura muda e silenciosa, resultado da essencial cegueira ao exterior, a que lhe abre caminho como pintor: visões interiores, lugares de utopia; oferecendo-se, irreais, a um impossível habitante real.

De facto, a pintura de Manuel Amado é sem real: sem tempo (apenas o das trajectórias adivinhadas na luz), sem lugar (apenas o da superfície pictórica) e sem acção (apenas a que nasce da interacção entre os elementos de representação). Porém, esta definição negativa da unidade teatral clássica esconde uma energia positiva: a prolongada pesquisa das fontes e a construção das imagens (num processo de anamnése ou recordação que simula ser imediato) afirma um tempo real; o atelier (espaço não revelado mas omnipresente) garante um lugar único; o trabalho sobre a tela e as tintas (disfarçadamente simples mas laboriosamente desenvolvido) estabelece uma coerência de acção. 

Agora, em O Espectáculo Vai Começar..., pela evidência das personagens (representadas pelos elementos variados de uma companhia de actores), surge a suposição de uma acção – porém, a mudez e o silêncio repetem-se, repete-se o efeito de uma representação utópica fruto da mesma dominante visão interior.

O teatro é uma memória íntima de Manuel Amado que a recebeu de seu pai (emérito encenador, autor e actor) e o praticou da infância à primeira idade adulta. O teatro é, também, uma poderosa metáfora da civilização humana, embora aqui seja «ilustrado» por personagens e espaços delimitados no tempo (a commedia dell’arte e o teatro «à italiana») e no contexto cultural (europeu), a sua realidade, ocidentalmente cristalizada na Grécia clássica mas detectável em todos os tempos e culturas, localizável no espaço próprio de representação que é o teatro mas, de facto, invasor de praças e ruas, é um símbolo de valia universal.

De modo a conjugar a base programática da sua pintura (o esvaziamento da cena) com a introdução de personagens e desencadeamento de acções Manuel Amado recorreu a uma série de estratégias temáticas e compositivas: são personagens de um teatro de mimos (mudos) mas, de qualquer modo, nunca pretenderam enganar-nos com nenhuma ilusão representativa – cada um deles é apenas um manequim, um recorte sem volumetria ou sequer espessura, os gestos são realmente fixados no espaço/tempo. Nenhuma ilusão, afinal, nesta estratégia representativa: não há vida para além da que se revela no nosso olhar, nos nossos conhecimentos e desejos exteriores à pintura, projectados na pintura.

Em que medida Manuel Amado se pode servir da imagem concisa do teatro para prosseguir o seu projecto? E em que medida esta última série integra logicamente a sua lista de temas? Qual o protocolo de Manuel Amado em relação a estas pinturas? Seleccionar, recortar, recolocar as figuras, acentuar a sua bidimensionalidade através da acentuação da diferença entre o plano em que se (a)firmam e o espaço ilusionista da pintura que as rodeia, é uma das técnicas. Esse próprio espaço teatral fechado e «à italiana» com que lida é uma realidade pós-medieval: coincide historicamente com a vitória da ilusão perspéctica definida na pintura renascentista e acentuada no maneirismo.

Amado serve-se da mitografia e da iconografia da commedia dell’arte (tomada nos desenhos do francês e seiscentista Calot ou nas pinturas do setecentista italiano Tiepolo). Este estilo teatral nasceu em Veneza, mas recebeu contributos de toda a Itália e foi um êxito europeu, nacionalizado em temas e heróis. Foi popular e provocador, subversor do poder dos absolutismos, mas sobreviveu de modo vigoroso e natural até finais do século XVIII e só claudicou perante a vitória da burguesia. Porém, a commedia dell’arte não foi morta nem pelo teatro romântico nem pelo naturalista. Os seus resquícios serviram mesmo a alguns dos primeiros vanguardistas (do internacional Picasso ao português Almada, com quem Manuel Amado conviveu) na composição de uma simbologia (de liberdade e tragédia, alegria ingénua e melancolia) que se queria intrínseca ao Homem moderno. Não foi sem razão que Manuel Amado escolheu, para usar e subverter, as figuras da commedia dell’arte; ao inventar para elas cenas e cenas, inexistentes em toda a dramaturgia (ainda assim bastante livre) do género, acentua a liberdade subversiva dos infinitos encadeamentos e a aleatoriedade das associações narrativas; ao indiferenciar «representação» e «vida real» neutraliza, abstractiza a narrativa e, com isso, regressa à pureza possível da pintura.

Manuel Amado coloca as suas personagens no espaço ilusionista de um teatro vazio, de bastidores penumbrosos, camarins recatados e palcos oferecidos ao espectador. Aí, convivem com cenários de tela e mobiliário de madeira e cartão, com arcas de adereços, portas fechadas e escadas sem fim. Embora sem nunca deixar de recorrer à pintura, Manuel Amado remete para a sabedoria da colagem na arte moderna e para o simbolismo da sombra na arte do teatro. A colagem permite manipular a imagem no espaço, a silhueta alertar para a fragilidade das relações entre corpo e alma. Manuel Amado não usa a colagem como exercício de evidência material/espacial, como o cubismo, nem com a feroz displicência desconstrutiva do dadaísmo. As suas personagens-recortes são um recurso de complexificação na linguagem ilusória da tridimensionalidade pictórica que usa. Ao deslocá-las nos espaços predefinidos dos fundos associa a colagem à decalcomania ou mesmo a processos de fotomontagem. Manuel Amado associa as suas personagens-recortes em cenas que podem ser: de pura representação teatral (codificadas pelos enredos e pela personalidade predefinida atribuída a cada personagem ou delirantes variações sobre esses mesmos temas); de pura intimidade entre os elementos de uma companhia teatral (fora do olhar do público, do encenador e da necessidade de ensaiar); ou situar-se na fronteira indefinida entre estes dois campos – deste modo refere a inescapável artificialidade do real e o inevitável fingimento de toda a acção.

Esta série aprofunda (ou torna assim explícita) uma menos evidente, mas mais interessante, leitura da sua obra. Amado interroga o destino individual do Homem. Estas figuras, sendo duplamente falsos actores, são, multiplicadamente, máscaras de máscaras; sendo recortes, são sombras e sombras de sombras – no conjunto, elevam a graus inesperados a representação da representação e testemunham a absoluta despersonalização do humano e a tragédia da sua liberdade paralisada. 

Citado em epígrafe, Rilke fala de um mundo onde o sentido de «comunhão» se perdeu. O que o teatro alguma vez uniu já não pode ser unido — Beckett saberia, depois, fazer um teatro do absurdo. Manuel Amado tem criado e apresentado imagens onde deseja que encontremos salvação, oferecendo-nos uma realidade que podia ser paradisíaca. Mas, afinal, é só a inevitabilidade de um mundo inquietante o que podemos encontrar. 

Só por radical incompreensão das subtis diferenças nos níveis de intervenção crítica permitidas aos criadores pela actualidade plural em que nos encontramos, se verá na pintura (formalmente tradicional) de Manuel Amado um desentendimento do presente, quer nos seus problemas imediatos quer nos do passado recente. A encenação dos elementos da sua pintura (da disposição dos objectos ao trabalho da luz), a técnica esfriada do seu desenho, a lisura das matérias e a apaziguada coloração contribuem para exprimir essa ideia moderna. Só por distracção se verá a sua pintura como tranquila superfície do real ou mera tradição figurativa – o exterior figurativo apenas existe como elemento facilitador de identificação de imagens que são interiores: subjectivas, espirituais e abstractas.

O Homem ocidental, quando pensa sobre si mesmo, sobre o seu passado, sobre o seu tempo e o do seu futuro, nunca deixa de predizer a Morte. Não a morte individual mas civilizacional. É uma linha de melancolia e depressão, garantida pelo exercício permanente do pensamento crítico, que parece inerente ao nosso espírito criador. É bem anterior à proclamação da morte da Arte (Hegel) e da morte de Deus (Nietzsche) mas culmina nesses dois discursos (tantas vezes simplificados). Embora a razão que ilumina os dois autores seja diversa (luz solar no primeiro, negra no segundo) deles nascem fontes que alimentam as díspares leituras que hoje fazemos dos paradigmas criativos (definidos entre o classicismo antigo e a academização neoclássica, entre o desequilíbrio maneirista e a exaltação expressionista) e das próprias propostas da contemporaneidade (do romantismo ao moderno e ao pós-moderno). A realidade criativa, seja artística seja política, torna-se neurótica e necrófila: anuncia, promove ou descobre a morte das classes, do sujeito, do romance, do teatro, da pintura ou, finalmente, das próprias vanguardas…

Há grande inquietação nas serenas imagens de Manuel Amado, as sombras parecem mais escuras do que são e há uma densa bruma melancólica na poeira de luz que inunda as suas pinturas: natureza e interiores são minuciosamente trabalhados de modo a tornar indecidível a linha entre medo e felicidade. Agora, ao acrescentar a sugestão de uma acção (que vimos ser duplamente falsa: porque a acção teatral o é sempre e porque aqui não pode haver sequer simulação de acção), estes indícios acentuam-se.

O trabalho de Manuel Amado exibe uma cintilação de suspense e terror que torna as suas imagens permeáveis ao absurdo da realidade tornando-o mestre na sua evocação. É a inteligência formal e programática desta pintura (do artista ao fazê-la e do espectador ao vê-la) que a coloca no limiar da consciência crítica que importa à cultura contemporânea. Série a série, Amado vai esgotando os temas das suas memórias pessoais (lugares e objectos) e da nossa iconografia civilizacional (a luz e a sombra, a casa, o jardim, a paisagem, o mar, a cerâmica, o teatro). Oferece-nos imagens que desmistificam o valor das imagens: colocam-nos perante a impossibilidade da presentificação e a inevitabilidade do esvaziamento. O que nelas parece apaziguamento resulta em revelação da mentira das imagens e da impotência do espectador perante o seu espectáculo: impossibilidade de concretização, de posse e ocupação das imagens oferecidas. 

Estará Manuel Amado inocente em todo este processo? Deveremos acreditar que não há nele intenção provocatória, desejo crítico, vocação reflexiva? O certo é que Manuel Amado, com a sua pintura, constrói, inconsciente ou involuntariamente consciente, um universo discursivo que deve ser entendido como acto de suprema distanciação: o seu mundo pessoal (memórias-desejos/desejos-projectos) situa-se equidistante em relação a detractores e admiradores. Este modelo, de facto irónico, garante a possibilidade da sua valoração no contexto da contemporaneidade e não como simples solução de resistência. Finalmente, talvez possamos supor um pintor que esconde a sua angústia sob os panos de cena, que mente quando (através do teatro – e teatro é toda a sua pintura) diz que está a mentir e que diz a verdade quando assim nos mente.