Emília Nadal
Muito boa tarde a todos, é com muito prazer que saúdo os presentes, o público que veio estar connosco para ouvir uma interessantíssima mesa de conferencistas que nos irão dar três olhares sobre a pintura de Manuel Amado. E vai ser com certeza muito estimulante ver como uma pintura aparentemente sobre temas objectivos ou mais ou menos objectivantes pode ter leituras tão diferentes ou tão próximas, e será interessante seguir esses olhares e ouvir as perspectivas de críticos de arte que a conhecem muito bem e, também, de um poeta. Portanto, vou começar por saudar o director do Instituto Cervantes, Manuel Fontán del Junco, que irá apresentar Juan Manuel Bonet, crítico de arte, que todos conhecemos. Teremos depois as intervenções de Bernardo Pinto de Almeida e do poeta Nuno Júdice. Dou a palavra a Manuel Fontán del Junco.
Manuel Fontán del Junco
Muito obrigado. Vou ser muito breve. Estou aqui a quebrar a simetria da mesa, porque é muito difícil rejeitar os convites da Teresa Amado, e ela pediu-me que apresentasse Juan Manuel Bonet. Aceitei, e é por isso que aqui estou.
Apresentar Juan Manuel Bonet não é difícil porque se trata de uma pessoa, como é o caso de Nuno Júdice e de Bernardo Pinto de Almeida, muito conhecida, tanto em Espanha como em Portugal, e por isso não será necessário um grande esforço. Por outro lado, para apresentar Juan Manuel Bonet, como ele merece, e fazendo referência a todos os seus méritos, teria de me alongar muito para fazer justiça em todos os campos nos quais Juan Manuel Bonet, bem como Nuno Júdice e Bernardo Pinto de Almeida, são pessoas relevantes no mundo das artes e das letras. Os três, por exemplo, partilham a criação poética. Os três partilham a escrita da crítica de arte. Gostaria, simplesmente, de dar um par de dados sobre a vida e a obra de Juan Manuel Bonet, e em seguida trocar de lugar com ele para me juntar ao público e ouvir esta sessão sobre a pintura de Manuel Amado.
Juan Manuel Bonet é filho do eminente historiador espanhol Belarte e de uma cidadã francesa que, entre outras coisas, para além de ter produzido o próprio Juan Manuel Bonet, é a autora da tradução de Venises de Paul Morand. Recordo esse livro porque começa dizendo que toda a existência é uma carta expedida anonimamente; a minha, dizia Morand, com três carimbos - Londres, Paris e Veneza. A de Juan Manuel Bonet tem muitíssimos mais carimbos - Londres, Veneza e Paris (onde nasceu em 1953), mas também Madrid, Sevilha, Lisboa e o Porto, muitas partes de Portugal, e Varsóvia.
Contudo, recordo Madrid. Faz provavelmente três anos, quando lhe disse que vinha trabalhar para Lisboa, entrámos num café e ele puxou de um guardanapo e escreveu o mapa onde ficavam determinados sítios de Lisboa onde eu poderia encontrar alfarrabistas e bons sítios para comer, tomar café e estar com os amigos. Esta maneira de pôr mapas em guardanapos é um costume pelo qual Juan Manuel Bonet é conhecido.
Agora vou falar dele como crítico de arte, como comissário de exposições e como director de duas das mais importantes instituições museológicas do nosso país: o Instituto de Arte Moderna, entre 1995 e 2000, e o Museu Nacional «Reina Sofia», entre 2000 e 2004, o que prova bem o nível intelectual e a capacidade e competência de Juan Manuel.
Sobre a sua obra poética, crítica e historiográfica queria referir apenas o livro que, para usar uma expressão de Borges, justificaria a sua existência, que é o Dicionário da Vanguarda em Espanha: 1907-1936 e que, quando o li, não é uma opinião autorizada mas apenas uma opinião subjectiva de leitor, me pareceu que estava ante uma espécie de Instituto Barbour unipessoal, porque aí se recolhia quase tudo o que se havia passado em Espanha, na América, nos mais diversos sítios, Paris, Madrid, Lisboa, e determinadas capitais ibero-americanas, as que na época eram mais importantes. Agora que Juan Manuel Bonet tem mais tempo, está a redigir o Dicionário da Vanguarda Sul-Americana e é provável que ele nos traga tanta sabedoria como a que podemos encontrar no que acabei de referir. Passo-lhe a palavra, e muito obrigado por me terem ouvido. Deixo-o convosco para que ele possa falar sobre a pintura de Manuel Amado.
Juan Manuel Bonet
Boas tardes, muito obrigado à Sociedade Nacional de Belas Artes pelo convite, muito obrigado à Teresa e ao Manuel Amado por me terem confiado a autoria do texto deste catálogo, e muito obrigado a Manuel Fontan por esta apresentação tão cúmplice e tão simpática.
Na verdade, é sempre uma grande felicidade estar em Lisboa, e para mais estar justamente a falar de quem hoje em dia pinta Lisboa como ninguém. Eu gosto muito de ver os pintores nos seus lugares – nos seus lugares de residência, nos seus lugares de trabalho - e, no próprio texto do catálogo, termino falando da casa onde vivem Teresa e Manuel Amado, e digo, textualmente, que me parece uma das mais formosas casas da vida que me foi dado conhecer. Este conceito de Mario Praz da casa da vida, como lugar onde cada um tem sempre por perto tudo o que necessita, aqui como apoio de um criador para criar, para se expressar, este conceito aplica-se especialmente bem a este lugar não muito longe da ponte, do qual se vê a ponte, numa praça que, quando há um par de dias saíamos dela, já de noite, parecia-nos que estávamos dentro de um quadro do Manuel Amado.
Eu creio que os pintores das cidades, os pintores que souberam captar a essência de uma cidade, nos fazem vê-la pelos seus olhos. E eu, desde que conheci a pintura do Manuel, já vejo Lisboa forçosamente pelos seus olhos. Há outros pintores que pintam a cidade, há cineastas, há fotógrafos, mas eu realmente creio que a Lisboa de hoje, a Lisboa de sempre, vê-la-emos sempre pelos olhos deste pintor que se identifica tanto com ela. Descobri a pintura de Manuel Amado no ano de 1995 quando a Telefónica, na sua sala da Gran Via madrilena, a expôs. E então escrevi um artigo, no diário ABC, de Madrid, onde dizia que – creio que o artigo se intitulava «El Hermano português» ou «El Hermano mayor português» - o via como alguém que estava a expressar coisas muito parecidas com as que pintores de uma geração mais jovem que a dele, em Espanha, estavam expressando. Um pintor que eu via sob dois aspectos. Por um lado, a sua identificação com a cidade, o que é muito interessante, saber até que ponto será o criador capaz de se identificar com uma cidade, e depois esse aspecto de pintor que prossegue um caminho à parte, um caminho diferente do demarcado pelas vanguardas, as vanguardas que eu tanto estudei, um pintor que prossegue o caminho iniciado por Giorgio de Chirico e por outros pintores que se situaram na contra-corrente da revolução vanguardista, na contra-corrente da revolução reducionista da pintura apoiando-se, ao contrário, na tradição.
O primeiro aspecto, não só o de pintor mas de criador da cidade, parece-me ser realmente muito interessante. De meados do século XIX em diante o destino da arte, se bem que também tenham havido esplêndidos paisagistas, foi um destino acentuadamente urbano. O poeta entrega-se à cidade. Havia um texto de Léon Paul Fargue, um poeta muito francês, intitulado O Poeta Apodera-se da Cidade. Este tipo de poetas, depois de Baudelaire, houve muitos em França, e houve muitos também na Península Ibérica - é o poeta que identificamos plenamente com o lugar onde vive. Pode ser um poeta de uma grande cidade, como é Lisboa, Barcelona ou Madrid, ou pode ser um poeta de uma cidade de província, e penso, assim de repente, nesse poeta Luís Pimentel, que expressava a vida pequena da cidade muralhada. Mas não só o poeta, também o fotógrafo - penso em Praz, e em seguida penso em Joseph Sude que disse que só podia ser fotógrafo da cidade - e o cineasta, há cineastas que também só captam a essência da cidade, como a fizeram Walter Luthmann. Ou pode ser o pintor. Há pintores italianos que o são de uma só cidade. Um pintor de Roma é capaz de nos dar uma tal visão que depois só podemos ver a cidade pelos seus olhos.
A tradição a que pertence Manuel Amado é claramente a da metafísica. E é entendido por metafísica não só os italianos (Chirico e companhia), mas também uma tradição mais ampla, e nessa tradição encontra-se o Balthus dos quadros da sua passagem parisiense; também surpreendente é Hopper, o pintor dos domingos. Manuel Amado também tem alguns quadros com referência ao domingo, esse dia quiçá tão propício a ser poetizado por pintores e poetas. É a tradição de Derain e também a tradição de Magritte.
Com tudo isto Manuel Amado constrói a sua Lisboa. É uma cidade que sempre também a vi assim como minha. Há um quadro, um dos três do tríptico sobre Pessoa, em que anoiteceu. E nesse quadro, o terceiro que está aqui em baixo, na série pessoana, chama-nos a atenção aquela janela iluminada que interroga quem passa. O passeante, muitas vezes, caminhando por uma cidade, interroga-se: que vida haverá para lá desta janela iluminada? Mas, salvo esse quadro, praticamente é sempre de dia. É uma cidade onde o sol projecta sombras, são algo de extremamente metafísico essas sombras. Ele pinta ruas, que às vezes são ruas muito prestigiadas, lugares muito conhecidos, a Praça do Município, a Praça do Comércio, os cais do Tejo. Outras vezes são ruas que não sabemos quais são, provavelmente ruas feitas da memória de ruas reais e convertidas em ruas imaginárias.
Vendo, no seu atelier perto de Setúbal, há dois dias, os quadros novos e ainda inéditos em torno do mundo do teatro, eu percebi, de repente, como os seus quadros explicitamente teatrais - que nos falam de cenários, ou de lugares ou panos de fundo para uma representação - são irmãos dos quadros que estão aqui nesta colecção e se reportam a Setúbal ou Lisboa. Quer dizer, a própria cidade termina convertendo-se de algum modo em cenário, no lugar da memória, num lugar imaginário no qual o pintor, ou o espectador caminha, um pouco sonambulamente, sem reconhecer muito bem que lugar concreto é aquele, que pórticos são aqueles, que ruas, que esquinas, que misteriosas montras. Cenários não apenas anónimos ou despojados da sua identidade concreta, mas cenários que perderam também as suas personagens, cenários praticamente despidos de personagens. E quando hoje, na sua série teatral, reaparecem as personagens que estão quase ausentes do resto da sua obra, são personagens que não são de carne e osso, são personagens também teatrais, são apenas figuras de cartão.
Cardoso Pires, falando da Lisboa de Manuel Amado, fala da serenidade doméstica que irradia desta cidade. Efectivamente, é uma cidade em que não se passa nada de especial, em que não acontece nada, em que não há factos históricos, mas apenas a própria essência da cidade como está representada. Eu creio que são tão lisboetas estes quadros que falam das ruas de Lisboa quanto os interiores que pinta Manuel. Estes interiores com maletas, com baús, com poltronas, às vezes com objectos tão quotidianos e actuais como a televisão, são interiores que também nos fazem pensar inevitavelmente na cidade em que estamos.
Ele também pinta jardins portugueses, estações de caminhos-de-ferro portuguesas. As estações de caminho-de-ferro pertencem a um âmbito absolutamente identificável com a tradição metafísica de Chirico, que pintou muitas estações. Pinta casas próximas do mar, pinta a cidade vizinha de Setúbal, pinta também - na série que será talvez a mais surreal da sua obra - a inundação que assolou Portugal há uns anos. Nas séries recentes que vemos aqui pinta também naturezas-mortas, dentro de uma visão absolutamente metafísica dos objectos que formam conjuntos muito enigmáticos, naturezas mortas em que cada um dos objectos representados acaba por ser uma espécie de personagem. E personagem teatral, dentro da visão que hoje é a sua, e que vimos na série tão interessante dedicada ao teatro.
Para terminar esta minha intervenção, gostaria de referir que, como a todos os grandes pintores, a Manuel Amado bastam muito poucos elementos para dizer o que pretende. É um pintor do essencial, e um pintor que, como sucede frequentemente na tradição figurativa moderna, tem às vezes quase algo de pintor abstracto, porque quando se reduz a realidade a muito poucos elementos pode chegar-se a esse grau de essencialidade que encontramos nos abstractos, tanto na tradição geométrica de Mondrian, como na tradição do sublime de Rothko. No seu caso, se fôssemos buscar o mais essencial da sua obra, eu diria que para recordá-la, para nos identificarmos com ela, bastar-nos-ia uma sombra numa fachada, como num quadro de 1999, chamado Sombras na Fachada, que é um quadro da série «Casa de Mateus». Esse quadro é para mim a essência da sua pintura, e para mim é de algum modo a essência da sua visão de Lisboa e de Portugal. O mesmo poderíamos dizer diante de um quadro como Já Devem Ter Chegado da série de «Setúbal». Também nele, escolhido para a capa do catálogo, passam levemente umas sombras sobre uma porta de uma casa, e este quadro e o outro que mencionei da série de «Mateus» trazem-me à memória certas sombras passageiras de certos poetas amados. Em concreto, no meu texto do catálogo mencionava alguns versos de Paul-Jean Toulet, que é um poeta pelo qual Nuno Júdice e eu compartilhamos a mesma afeição, um poeta de quem também Borges e Octavio Paz gostavam muito, um poeta que também ia ao mais essencial.
Finalmente, creio que a Lisboa de Manuel Amado já estava ali antes de ele começar a pintá-la mas, desde que a começou a pintar, a sua indispensável pintura ensina-nos a vê-la, com os seus olhos, de outra maneira.
Bernardo Pinto de Almeida
Muito obrigado antes de mais à Sociedade Nacional de Belas Artes por este convite, à Teresa e ao Manuel, com certeza, porque são grandes amigos, e por outro lado é evidentemente um prazer para mim estar junto de duas pessoas que respeito e admiro tanto, e a quem me ligam relações longas, como seja o meu velho amigo Juan Manuel Bonet e o poeta Nuno Júdice. Portanto, estar aqui é, a vários títulos, motivo de prazer e de honra muito grandes. Achei muito interessante que o Juan Manuel tenha vindo confirmar uma hipótese que muitas vezes me tenho colocado ao longo dos anos, a de que a arte portuguesa só começará a ter uma dimensão internacional quando for vista a partir de fora; porque aparentemente é da nossa tradição não olharmos para os nossos próprios artistas, como também não olharmos para os nossos próprios poetas. E é muito interessante que seja um historiador e um crítico de arte espanhol, no caso, cuja erudição e cuja responsabilidade no mundo da arte europeia destes últimos anos está atestada pelos muitos lugares que desempenhou, que venha fazer uma releitura da pintura de Manuel Amado à luz de um olhar, digamos, descomprometido com aquele que muitas vezes nós mesmos temos. E portanto essa prova de relação com o exterior parece-me ser essencial, e acho muito interessante que o Juan Manuel traga uma interpretação tão enriquecedora à obra do Manuel, porque julgo que esta obra tem sido injustamente considerada entre nós. Isto é, embora tenha com certeza sucesso público, porque é muitíssimo apelativa e tem um grande poder de atracção em si mesma, ela não tem merecido como aliás acontece com outros artistas portugueses da maior importância - ela não tem merecido a atenção interna que mereceria ter. Assim, eu só posso ficar contente que apareça um historiador com o prestígio do Juan Manuel a apresentar entre nós a exposição do Manuel, e julgo que isso deve ser sublinhado.
Depois, pegando directamente naquilo que ele próprio diz, creio que essa ideia de tematizar Lisboa (não só Lisboa como Setúbal) na obra do Manuel se insere numa corrente que, na arte portuguesa do século XX, não perdeu sentido. E lembraria dois ou três exemplos - só para configurar esta breve ideia que deixava para depois conversarmos a seguir - quer o caso de um Carlos Botelho, quer, nos anos 50 e ainda até meados da década de 60, a pintura do Nikias Skiapinakis, ou se quiserem a pintura a todos os títulos interessante de uma Maria Keil, os quais de alguma maneira se apresentam como sinalizações dessa outra ordem de artistas que, na pintura portuguesa do século XX, entenderam não perder de vista o sentido da paisagem urbana.
Agora, isso seria suficiente para fazer uma escola de Lisboa, no sentido em que se pode falar de uma escola de Paris? Era uma hipótese engraçada, apenas um tópico que gostaria de deixar no ar. Mas, onde me interessava mais pegar, até para não repetir as temáticas abordadas pelos meus colegas, era em dois ou três pontos, nos quais vou tentar ser breve. É que, no campo de referências da pintura de Manuel Amado, eu julgo que estão decerto estes nomes que já foram mencionados pelo Juan Manuel (Morandi, Hopper e outros), bem como os de alguns artistas espanhóis contemporâneos, nomeadamente Antonio López García, que julgo serem pintores da mesma família espiritual, por conseguinte pintores que admitem que a pintura serviria o propósito de comunicar certos estados de espírito, certas formas de olhar o real de uma outra perspectiva - Chirico com certeza, provavelmente antes de todos, e eu acrescentaria Marguerite Duras... Parece assim um pouco pelo gosto do escandâlo, mas não é.
Se lembrarmos um filme de Duras chamado Son nom d'un Calcuta desert, esse é de facto um filme em que, sobre uma banda sonora que é exactamente a mesma que a do India Song, o célebre filme (ou talvez o mais célebre) daquela cineasta e escritora, se visitam e revisitam cenários completamente desabitados. E é muito engraçado pensar a dimensão cinematográfica da pintura do Manuel na relação por exemplo com o cinema da Duras; não só com esse filme, mas esse filme desde logo, como em geral com outras abordagens que a Duras tem proposto no seu cinema, a saber, a tentativa de perceber, ou, se quiserem, projectando numa dimensão muito mais contemporânea, a instalação que actualmente ocupa as salas da Tate Britain, que é do Bruce Naumann, em que o artista optou, em homenagem ao John Cage, por não mostrar qualquer obra nas paredes ou no chão, mas, ao contrário, por deixar que se ouvissem vozes à medida que o visitante caminha ao longo da exposição. E se quiserem fazer o favor de a seguir visitar a exposição do Manuel munidos desta hipótese de trabalho, provavelmente poderão experimentar uma sensação do mesmo nível, ou seja: é possível ouvir vozes quando se vê a pintura do Manuel. Ela, pela sua própria desabitação, e é isso que eu acho que é um dos seus enigmas, uma das suas dimensões mais surpreendentes, gera desde logo uma espécie de vozearia à volta, ao mesmo tempo que é profundamente silenciosa em si própria. Mas, precisamente porque se trata de uma pintura que convoca um estado profundo de silenciamento, de alguma maneira somos levados - imaginariamente, claro, porque é de imaginário que se trata numa sala de pintura - somos levados a escutar vozes. Vozes, enfim, que, no limite, podiam ser também as dos senhores que andam a visitar a exposição, quem tosse, ou que podem ser as nossas próprias vozes interiores, aquilo que em nós fala. E é aí, julgo, que radica a importância poética da pintura de Manuel Amado, quer dizer, aquilo que nela é capaz de suscitar, em cada um de nós, a capacidade de escutar vozes que de outra maneira não seríamos capazes de escutar. Este é um dos tópicos que gostaria de deixar à vossa consideração. Desde logo, há um «truque» (algo que se passa ao nível do estilo) na pintura do Manuel, que é motivo de um segundo enigma. Eu gostaria de ir por enigmas, até porque já tive oportunidade de escrever sobre a pintura do Manuel, e mesmo antes de ter escrito era uma pintura que não parava de me levantar questões. E portanto, neste sentido em que ela me levanta questões, reparo que esse conjunto de questões - que ao longo dos anos se tem vindo a desenvolver, à medida que a sigo, e tenho-a seguido sempre de muito perto – se coloca em mim no plano daquilo a que chamamos enigma. Eu fico sempre sem resposta para as questões que se me levantam, e portanto trago-vos mais perguntas que propriamente respostas. Então, uma segunda questão é que - e para esta encontrei uma solução hipotética, depois a Manuel talvez nos possa esclarecer – na pintura do Manuel há uma espécie de truque, que se passa como dizia ao nível do estilo, e que consiste no seguinte: o Manuel pinta de facto, e é aí que a referência ao Hopper é claríssima, e ao Morandi em certa medida também. Tendo ele embora um domínio técnico extraordinário, que por vezes se detecta naquilo que ele faz como uma evidência, quer dizer, evidentemente que é um pintor que sabe o que é a pintura e que conhece muito bem por dentro a que é o domínio da sua própria arte, de alguma maneira ele deixa o quadro sempre num estádio anterior, e isso funciona como uma presença muito forte, num estádio imediatamente anterior ao que seria o quadro acabado, ou seja, ele desenvolve uma espécie de motivo de amadorismo, ele faz-se passar de alguma maneira - e eu julgo que é por isso que a crítica não o tem entendido tão bem, porque isso é uma espécie de ironia ao mesmo tempo - é que ele faz-se passar por um pintor amador, como se fosse um pintor de domingo, que quisesse dizer «mais do que isto não sei»... E essa ingenuidade aparente, essa espécie de atitude de desprendimento relativamente à pintura, gera no espectador, no espectador que vai de boa intenção para ver essa pintura, gera uma espécie de perplexidade. É que esta pintura parece acabar um momento antes de estar pronta. Ora, num pintor de longo curso como o Manuel, que já deu todos os testemunhos que precisava para mostrar que domina completamente a sua arte, isso é de facto uma marca de estilo, é aí que ele faz uma distinção profunda entre o que é o seu universo pictórico e o que é o de outros pintores. E nesse aspecto, aparentemente sendo a sua uma pintura naturalista, ela deixa imediatamente de o ser na medida em que gera uma espécie de efeito de naiveté que é completamente calculado, porque não é por incapacidade, mas sim por uma suspensão do acto de pintar no momento imediato em que ele se tornaria por exemplo objecto de espanto diante de tanta perícia. E nessa capacidade de reter, congelar, interromper o acto antes mesmo que ele se torne motivo de aplauso, por exemplo, há qualquer coisa na pintura dele que resiste ao bem-pintar. E nisso ele é profundamente moderno, imediatamente por aí ele introduz um factor de modernidade na recusa mesma de ceder ao que seria o seu próprio talento e a sua própria capacidade, pelo contrário, atrasando-se, como diria Duchamp, fazendo um retard em vez de um regard, para citar uma fonte do século XX, gerando portanto um efeito que age de alguma maneira no espectador, perplexizando-o. Este é um outro tópico que gostaria de deixar.
Depois, a propósito deste, e nesse sentido só - no sentido da referência ao Hopper como pintor de domingo que Juan Manuel propôs - a vida do Manuel opera um pouco como se víssemos um Hopper desabitado. Chega-se ao Hopper e apagam-se as figuras, faz-se isso agora em Photoshop, e temos qualquer coisa da ordem do que o Manuel quer fazer, e do que faz muitas vezes. No seu melhor procedimento, nos momentos em que atinge o nível mais alto da sua própria pintura, ele entra nessa dimensão. Onde isto se vê muito bem é por exemplo no tríptico sobre Pessoa: o quarto de Pessoa, quando desabitado, é provavelmente o quarto dos heterónimos de Pessoa. E é engraçado que ele faça os três - são talvez os três mais conhecidos -, porque aquele Pessoa que lá não está é, em certa medida, o Pessoa da heteronímia. E portanto, nesse sentido, o retrato remete para aquilo que, por exemplo, os surrealistas - e a referência ao Magritte é muito evidente por ai - chamavam de retratos imaginários. Efectivamente, na pintura do Manuel ocorre muito essa dimensão do retrato imaginário. Ora, o retrato imaginário, por natureza, como o conhecemos pelo menos desde que o Dalí fez o Isidore Dukas, conde de Lautréamont, é precisamente aquele que não pode representar o rosto, porque é na ausência desse rosto que se imagina a possibilidade. E é muito engraçado pegar num artista que, de alguma maneira, a cada passo, toca temáticas afins, um artista português, o Nikias Skiapinakis, cuja última série é precisamente a dos quartos de uma série de artistas (o quarto do Morandi, o quarto do Amadeo de Souza Cardoso, o quarto de Egon Schiele), que são também quartos completamente desabitados. E é muito engraçado ver em que medida, numa certa altura, isto faz pequenas constelações entre a pintura do Manuel, a pintura do Nikias, a pintura de outros artistas que se acenam desde longe. O que eu quero do artista, no fundo, é apenas esse espaço, no campo poético, no campo cultural, é apenas esse espaço mais ou menos alargado onde é possível que uns se acenem aos outros, reconhecendo que estamos todos aqui. Isto torna-se muito interessante, por exemplo, quando o Manuel introduz - como fez na série das inundações, que a mim particularmente me impressiona muito - a presença da água. Os mesmos espaços que eram os da sua pintura aparecem subitamente inundados, ou seja, não são espaços desconhecidos para nós nem para ele, ele continua a pintar exactamente aqueles sítios que já pintava antes, mas, magritianamente, em certa medida, introduz-lhes uma nova dimensão, que não pode de todo ser casual, que é a água. E essa forma de inundação remete, creio eu, para aquilo que é - e com isto passaria depois para o tema final desta minha intervenção – quanto da pintura do Manuel é da ordem da memória. Nós sabemos, pelo menos desde os mitos gregos, como todas as representações da água se referem sempre a representações da memória. Portanto, a água, sempre que aparece como elemento visível, de alguma maneira remete, desde o mito grego ao arquétipo jungiano, remete sistematicamente para a dimensão da memória. E é muito engraçado que, nesses quadros, a água, se num primeiro momento pode tomar perplexo o espectador, isso não choca desde logo, porque há como que uma espécie de sobressalto, que é operado pela imagem, por forma a que se reforce, sublinhe, quanto no espaço pictoral do Manuel tudo de facto remete para qualquer coisa que é uma reflexão profunda, extremamente poderosa mesmo, sobre a questão da memória e, evidentemente, porque falamos de memória, sobre a questão do tempo. E este será então o meu último tópico. O Manuel é um pintor do espaço, numa primeira leitura esta é uma evidência súbita, o Manuel pinta espaços. Ora, se isto é evidente a um primeiro olhar, o facto é que aquilo que o Manuel pinta de facto não é o espaço – porque aqueles espaços ou não existem, ou, se existem em si mesmos, não são motivo que chegue ou que baste para as pinturas - porque o que eu julgo que o Manuel pinta é o tempo, e é aí que reside o maior enigma da pintura dele, e aquilo que mais me inquieta desde que conheço a sua pintura e reflicto sobre ela. O Manuel é um dos poucos pintores portugueses que tem ousado pensar a questão do tempo. Pois, através desses espaços, que são desabitados, o Manuel sugere a possibilidade de representar o tempo, porque o tempo é o que nós não sabemos representar precisamente, o tempo é em certa medida o irrepresentável. Ora, através deste modo, desta forma, desta inteligência de representar espaços, ainda por cima iluminando com umas luzes muito diáfanas, muito apelativas, a uma certa altura nós somos como que sugados, e é isso que um quadro deve fazer, deve sugar-nos, gerar um espaço para o qual nos suga, somos sugados para o interior desse espaço e somos confrontados - tal como vos falava no princípio na questão das vozes que começamos a ouvir em nós mesmos - somos confrontados fundamentalmente com a questão do tempo. E é este modo que o Manuel tem de, através do espaço, sugerir o tempo, ou de espacializar o tempo, que faz dele de facto tudo menos o pintor naïf que ele gostaria de parecer, ou com cuja máscara ele se disfarça perante a muita discrição que tem porque é um homem discretíssimo, que não gosta de aparecer, não gosta de se mostrar, tem uma espécie de humildade genuína – é uma das máscaras que ele utiliza para mostrar, para impedir que se perceba imediatamente, porque há uma dimensão tão profundamente meditativa e tão inteligente na pintura do Manuel que só à medida que nos deixamos ir captando por aquilo que ela nos sugere é que nos confrontamos com as muitas dimensões para que ela abre.
Nuno Júdice
Muito obrigado pelo convite para falar desta pintura sobre a qual já tivemos a oportunidade de ouvir uma relação com o espaço, uma relação com o passado, uma relação com o tempo – são três dimensões fundamentais na pintura de Manuel Amado – e Bernardo Pinto de Almeida colocou uma outra dimensão que é o enigma.
Eu começava por uma interrogação:
Em que mundo estamos com a pintura de Manuel Amado?
Lembro-me que uma das minhas leituras favoritas de há alguns, muitos, anos, foi a ficção científica; e talvez o que mais me atraía nesses livros era o universo pós-apocalíptico: a terra esvaziada de humanos, depois de um cataclismo ou de uma guerra, e reduzida a um cenário por onde seres extraterrestres, ou viajantes de outras galáxias, descobriam imagens de uma beleza surpreendente.
Ao olhar para estes quadros de Manuel Amado - ruas, praças, fachadas, janelas, interiores de casas - regresso a esse mundo pós-qualquer coisa por alguns instantes, antes de entrar naquilo que é, verdadeiramente, a questão desta pintura: a representação. O que se representa aqui, então? Antes de mais, temos a própria tradição da pintura. Há um rigor «provocatório» na arte de reproduzir o real, neste tempo dominado pela «bad painting» ou pela «arte povera», que não são mais do que artifícios culturais para fazer passar muito bluff e muita incompetência, desde a técnica estética; e há também o assumir de uma tradição que começa com os primitivos e o Renascimento, chamando a atenção não tanto para os primeiros planos, onde se encontram figurações humano alegóricas, da religião à mitologia, mas para essas janelas do fundo que abrem para arquitecturas vazias, pelo simples prazer do desenho natural ou construído; segue pela descoberta da natureza-morta, a partir do maneirismo e do barroco, até aos flamengos, transferindo para o objecto a qualidade subjectiva que o olhar nele investe; e prossegue pela modernidade, de uma recuperação irónica dos «pompiers» oitocentistas até ao melhor surrealismo (de Chirico a Magritte e Delvaux); terminando com a referência à arte máxima dos realistas, como Hopper.
É portanto uma pintura sábia e consciente do seu passado que Manuel Amado nos dá; mas onde a sua invenção se exerce é na escolha dos ciclos que articulam este retrato do vazio contemporâneo. Cenários, com efeito, é aquilo que ele nos apresenta; mas nesta encenação do mundo são as coisas que adquirem um protagonismo ionesquiano, dando o absurdo não da imagem que os quadros nos transmitem, mas do real que, eventualmente, estará na sua origem. Assim, estas ruas sem gente e sem automóveis e sem poluição; ou estas casas sem o quotidiano dos seus habitantes; ou a água que, no tempo das cheias, limpam e purgam o espaço habitado; ou o próprio quarto de Pessoa, na sua nudez fantasmática, em que a única vida é transmitida pela mudança de luz, de manhã à noite, também aqui com uma citação (não sei se inconsciente) do Andy Wharol que filmou Nova Iorque durante um dia, em plano fixo, apenas sobre as variações introduzidas pela passagem do dia: dão-nos a a riqueza plástica de um quadro inesgotável, apesar da aparente simplicidade do processo, na sua repetição musical e barroca.
Com efeito, é a partir do tempo que Manuel Amado constrói a sua pintura. Esse tempo nasce do olhar - e, tal como o olhar dos impressionistas, vive da cronologia natural, em que as estacões ou as horas ditam a forma do mundo; mas é também um tempo que o sujeito pode subverter, através da artificialidade da luz ou da sombra que passa pelos interiores, atravessando-os e dando ao objecto uma personalidade fantasmática, que nos toca e interroga com a sua presença inesperada e sempre surpreendente.
Curiosamente é esta, para mim, a subversão da pintura de Manuel Amado. Essa presença do olhar, com a sua evidência absoluta, liberta-nos das segundas intenções que dominam todo o mercado contemporâneo da arte. O questionamento do mundo não vem da envolvente social, estética, comercial, etc., que domina esse universo; mas surge de dentro da própria pintura, e do gesto da mão que se apropria desse olhar para o projectar na tela, nesse gesto que, finalmente, é a própria essência do acto de pintar. É, então, um regresso ao contacto solitário do espectador com o quadro, na sua mais imediata simplicidade, que Amado nos propõe; e nessa solidão regresso a esse espaço da ficção científica, em que o viajante de algures desembarca na terra para se encontrar, sozinho, com a arquitectura e a natureza de um planeta esvaziado.
É, então, um mundo pós-apocalipse este que Manuel Amado nos dá; e somos nós, finalmente, os extra-terrestres que nos passeamos por entre estas imagens, receando violar a sua beleza e perfeição absoluta - antes de sairmos para a rua, onde encontramos finalmente o verdadeiro apocalipse.