José-Augusto França Uma pintura de evidência 1997

Texto referente à exposição:
Manuel Amado, Pintura - Galeria Antiks Design, Lisboa, 1998

Pode uma história ser contada no interior destes cenários vazios de personagens, deserto de paredes num deserto de tempo? Pergunta de resposta tão fácil que... 

É que, nesta pintura de evidência, algo se esconde ao espectador como uma armadilha tendida que no infinito se prolonga. Pintura sem fim, se dirá então, para além da sua transposta aparência feita de três paredes de perspectiva que o pintor sabe formular por assim ter, como arquitecto, aprendido. Diante dele, mesmo que o ponto de fuga se desloque de um lado a outro lado, o espaço fecha-se, por natureza da figuração que assim o situa; enquanto, por detrás de quem pinta, o espaço livre circula, cheio de gente invisível, de árvores, montes e mares, de luzes e de sons, de toda a natureza que o cenário ignora ou recusa - metafísico que é, como se assim o pintor o tivesse feito. Mas fê-lo ele ou antes se fez, a si próprio, o cenário?... 

A facilidade da resposta ao princípio possivelmente imaginada nesta situação se coloca de dificílima maneira - que é a de todas as respostas a todas as perguntas que as imagens podem alguma vez transportar, no tempo que sobre elas passe. Tão diferentes são os tempos, da pintura e do espectador...

Pintura metafísica se dirá então. É-o (ou a que título), esta pintura que Manuel Amado pratica? A história da arte assim nomeia como se sabe, uma pintura no início do século, cujo carácter simbolista contrariava, em metáfora, a aventura física e metamórfica do cubismo; era italiana também e paralela a um futurismo de entre uma coisa e outra. Praças monumentais de arcadas e estátuas mortas, manequins sem alma e geometrias sem corpo interrogavam nela o destino imaginário, passeio de um sonâmbulo chamado De Chirico, indo entre personagens inventadas. O facto de as inventar punha, porém, em dúvida a metafísica suposta no discurso que, para além delas, deixava de ter sentido - afinal simbolicamente satisfeito num processo literário de curto fôlego histórico. A história (da arte e da nossa relação com todos os sistemas de imagens) tem necessariamente outro fôlego, jamais redutível a qualquer satisfação. Em suspenso, magicamente, por assim dizer.

Um cenário vazio como esperando o que possa acontecer-lhe, eventualidade de drama ou peripécia, é o que é e, sendo-o, separa-se da acção figurativa de quem o observe ou adopte ou invente.

A metafísica é sua, como a evidência que oferece: não vem de qualquer classificação estética, produto de um processo mental exterior, mas de sua própria categoria interna. A técnica deste pintar é, por isso, lisa e impessoalmente serena, de luz igual, angular, na sua bastante aparência - como se nada o pintor quisesse acrescentar à imagem em si próprio nascida, na simplicidade dos elementos cenográficos, que outros não poderiam nunca ser. Os valores que ele observa à volta, já em pintura os vê, como se em pintura nascessem. Um quadro nasce assim por ter nascido: nenhuma vidência neste pintor, mas uma evidência nesta pintura...

Ela tem isso de bom e tem isso de mal: no primeiro caso, para quem olhar o quadro como aquilo que um quadro sempre é e tem que ser; no segundo, para quem quiser acrescentar-lhe algo que não lhe falta. A metafísica da pintura de Manuel Amado está nela própria, não em adjunções poéticas ou filosóficas, por simbolismos de literária precisão. Trata-se, em boa e merecida verdade, de uma pintura inocente. Contem-se depois, dentro dela, as histórias que se quiser, de efabulação nocente, ela sim - como todas as efabulações são.

Se não vejamos, uma a uma, estas curiosas vistas de interior que Manuel Amado foi pintando, pacientemente, com humores certos: escadas de prédio, salas de estar ou de passar, um quarto de cama surpreendido (com alguém, sim, mas ausente no seu sono) ou uma praia à hora  deserta de ainda não o ser, ou de ter deixado de sê-lo - questão de luz então exterior e igual, nos limites do quadro em que o mar é somente fundo e limite do olhar.

História a contar, entre os espaços de entrar e sair, não faltará, decerto, numa banda de imagens que se perseguem; bastará para isso segui-las no seu andamento: trepa alguém por uma escada, na curva do lance, e penetra, invisível, na sala, atravessa depois o corredor, sobe ao terraço, debruça-se da varanda. Amante ansioso, fantomas fugidio? Olhemos antes estas janelas abertas para além da narrativa suposta. Não são elas que estabelecem toda a possibilidade de ligar o dentro e o fora do espaço que nada impede? O vidro torna ineficaz a separação que o olhar ignora, passando-nos através, como se cá e lá estivesse o que não está. Abre o pintor a janela por astúcia de perspectiva, e tanto faz; ou fecha-a para o mesmo resultado do espaço indefinido, e do seu tempo jamais linear.

Depois disso, que interesse terá o que possa passar-se, entre pessoas e personagens inúteis, em seus dramas achadas ou perdidas? Inventar a resposta, no deserto proposto e no tempo igualmente vazio, seria tombar na armadilha da facilidade de todas as histórias. Que nos bastem então as não-histórias que invisivelmente habitam o espaço silencioso e o tempo suspenso de toda a gente - quando são oferecidas evidências em que o olhar do espectador se move, numa própria e irredutível, pintada metafísica...