A lâmpada acesa
(Outrem a acendeu)1
Fernando Pessoa
I
O espectáculo já começou. Vinte anos depois, o Millennium bcp como que comemora um significativo marco da sua actividade, associando-se de novo à divulgação pública da obra de Manuel Amado. À aquisição da série de quadros em que se plasmava a memória de comboios, estações e apeadeiros, seguiu-se a exposição neste edifício da Rua Augusta, aquando da sua inauguração, e a itinerância pelo País e pelo estrangeiro – culminando na mostra de Washington, na Smithsonian. O mecenato é por definição um acto de vontade, e o apreço pelo Artista adquire expressão inequívoca quando se procura acompanhar de perto o seu percurso. Daí que a pintura de Manuel Amado tenha uma presença ímpar na Colecção de Arte Millennium bcp.
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1.«O que mais impressiona é a luz, a sombra, os reflexos no ambiente.»2. A síntese é de Bruno Munari, que logo notou como nas estações não se vê ninguém «a quem pedir informações», nem mesmo «o dono da mala» ou «quem deixou a bicicleta»...
1.«O que mais impressiona é a luz, a sombra, os reflexos no ambiente.»2. A síntese é de Bruno Munari, que logo notou como nas estações não se vê ninguém «a quem pedir informações», nem mesmo «o dono da mala» ou «quem deixou a bicicleta»...
II
O mesmo se dirá do (triplo) quarto de Fernando Pessoa, quarto sonhado, silente, deserto, onde por três vezes o tempo se suspende: nunca vemos quem abriu a janela, quem acendeu a lâmpada que faz no chão incerto / um círculo a ondear3. A ausência da figura humana não significa, contudo, desumanização: está muito presente o olhar de quem observa e representa. A associação a Hopper é frequente, a afinidade evidente. Mas não encontramos na pintura de Manuel Amado tal soturnidade, tal melancolia. Haverá talvez saudade – e, ao menos nesta nova série, profunda ironia: até as figuras da commedia dell’arte surgem recortadas, inanimadas como os cenários, visível a carpintaria. -Tornam-se representações de representações de representações...
III
Y pues representacioneses aquesta vida toda,merezca alcanzar perdónde las unas y las otras.4
Calderón de la Barca
Saudade, decerto. Não será coincidência que esta nova fase aconteça quando se cumprem seis décadas sobre a fundação por Fernando Amado da Casa da Comédia e a estreia da sua Caixa de Pandora. Ainda que não fosse consciente, não poderia deixar de constituir também homenagem ao grande vulto da Cultura Portuguesa, nunca suficientemente reconhecido. Somos, pois, transportados ao mundo do teatro, «mundo vertiginoso porque, embora imagem da vida, as suas dimensões não são as da existência quotidiana»5. Está ali a pergunta: «O que é, afinal, o teatro por dentro?»6 E ensaiam-se respostas: «Teatro não é uma cena apenas. É a cena e a plateia.» Mais: não se trata apenas do mundo do teatro, é o grande teatro do mundo. A vida é – também – sonho, e o seu actor, enquanto representa, poeta: «Se não tiver o dom da poesia, [...] será incapaz de uma verdadeira representação, isto é, dar presença a uma aventura imaginada.»7.
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Vinte anos depois, de novo fazemos nossas as palavras de Munari: «Auguro a Manuel di continuare a dipingere, sono curioso di vedere cosa farà ancora...»8.
2 Railway Stations – Manuel Amado, The Wilson Center (Washington, DC / Smithsonian Institution Building), Maio de 1987.
3 Fernando Pessoa, op. cit.
4 Pedro Calderón de la Barca, El Gran Teatro del Mundo, final.
5 Fernando Amado, «O que o Público não vê – o Teatro por Dentro», in Peças de Teatro, org. Teresa Amado e Vítor Silva Tavares, pref. Augusto Sobral, Lisboa, INCM, 2000, p. 562.
6 Idem, ibidem, p. 592.
7 Idem, ibidem, p. 564.
8 Comboios, Estações e Apeadeiros, Smithsonian Institution – Wilson Center, Washington, 1987.